Entre
o dinheiro e o Inferno: a usura e o usuário
«(…) Isso exige dos dois
parceiros da confissão um grande esforço com o qual a tradição não os habituou.
O penitente deve interrogar-se sobre a própria conduta e as suas intenções, entregar-se
a um exame de consciência. Uma frente pioneira está aberta: a da introspecção,
que vai lentamente transformar os hábitos mentais e os comportamentos. É o
começo da modernidade psicológica. O confessor deverá fazer perguntas convenientes
que o levem a conhecer o seu penitente, a separar, de seu lote de pecados, os
graves, mortais sem contrição nem penitência, e os mais leves, os veniais que
podem ser redimidos. Os pecadores que morrem em estado de pecado mortal irão
para o lugar tradicional da morte, do castigo eterno, o Inferno. Os que
morrerem carregados apenas com pecados veniais passarão um tempo mais ou menos
longo de expiação num lugar novo, o Purgatório, que irão deixar depois de
purificados, purgados, em troca da vida eterna, do Paraíso, o mais tardar no
momento do Juízo Final.
Nessa nova justiça penitencial, o
que vem a ser o usurário? Os confessores, confrontados com uma situação nova, com
o conteúdo muitas vezes novo para eles da confissão, com declarações ou
questões que os embaraçam, hesitantes sobre o interrogatório a ser conduzido,
sobre a penitência a ser aplicada, sentem necessidade de guias. Para eles,
teólogos e sobretudo canonistas escrevem sumas e manuais, eruditos e detalhados
para os confessores instruídos e de alto nível, sumários para os padres simples
e pouco cultos. Mas a esse exame ninguém escapa. A usura tem o seu lugar em
todas essas codificações. O usurário menos, a sua pesagem comporta uma certa
avaliação pessoal deixada à apreciação do confessor. Em compensação, o usurário
aparece como principal protagonista do segundo tipo de documentos: os exempla.
O exemplum é uma narrativa
breve, dada como verídica e destinada a se inserir num discurso (em geral um
sermão) para convencer um auditório com uma lição salutar. A história é breve,
fácil de ser lembrada, ela convence. Usa da retórica e dos efeitos da
narrativa, ela comove. Divertida ou, com mais frequência, assustadora, ela
dramatiza. O que o pregador oferece é um pequeno talismã que, se for bem
compreendido e utilizado, deve trazer a salvação. É uma chave para o Paraíso. Eis um dos numerosos exempla
de usurários, tirado de Jacques Vitry, falecido pouco antes de 1240: um
outro usurário riquíssimo, começando a lutar contra a morte, pôs-se a afligir-se,
a sofrer e a implorar à sua alma para que esta não o deixasse, pois ele a havia
satisfeito, e lhe prometia ouro, prata e as delícias deste mundo se ainda
quisesse ficar com ele. Mas que ela não lhe pedisse, em seu favor, dinheiro nem
a menor esmola para os pobres. Vendo, enfim, que não a podia reter, encoleriza-se
e, indignado, lhe diz: preparei-lhe uma boa residência com abundância de
riquezas, mas tornou tão louca e tão miserável que não quer repousar nessa boa
residência. Vá embora! Eu a entrego a todos os demónios que estão no Inferno.
Pouco depois entregou o espírito nas mãos dos demónios e foi enterrado no Inferno».
In Jacques Le Goff, A Bolsa e a Vida, 1986/1989/2004, Editorial
Teorema, 2006, ISBN 978-972-695-683-9.
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