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«(…) Desde que Raquel passou a
habitar o infecto anexo na costa do castelo, jamais Diogo Pacheco deixou de a
visitar com regularidade, ora para lhe fortalecer a alma em ruínas, ora para a
ajudar na medida das suas possibilidades. E mesmo no período em que ela viveu
sob a protecção da família do professor de Leis, a jovem contou sempre com o
apoio generoso, embora esparso, do homem que a salvara das chamas. Sucede,
porém, que em nenhuma circunstância passada ou recente o fidalgo se aproximara
tão intencionalmente da rapariga como naquela tarde caída do céu. Há muito tempo
que Diogo Pacheco se encantara pela jovem, mas fosse por timidez ou pelo
evidente apego às convenções religiosas, a verdade é que nunca o homem tomara a
iniciativa de se acercar dela no claro propósito de se declarar emocionalmente
afeiçoado e, como expressão suprema do seu afecto, possuí-la.
Porque me salvastes da morte
violenta?, perguntou a jovem. Para estar hoje, aqui, contigo, respondeu ele,
num tom de comovedora ternura. Tinha chegado a hora do Sol poente. O quarto
estava imbuído de uma penumbra imóvel, frágil e doce em que já mal se
distinguiam os corpos e os sorrisos. O silêncio era total. Emocionada pelas
palavras que acabara de ouvir, Raquel Aboab abraçou o homem, deu-lhe um beijo
na face e disse: tendes vindo a ensinar-me uma coisa de que nunca me
esquecerei. O quê?, perguntou ele, ansioso. A esquecer. Olhou para ela cada vez
mais enternecido, tocou-lhe os lábios com a ponta dos dedos trémulos e, como se
quisesse transmitir-lhe uma confidência de alma, segredou-lhe ao ouvido: esquece,
mas não perdoes... A isto a jovem nem respondeu. Inclinou a cabeça para trás,
fechou os olhos, abriu os braços já desnudos para então se oferecer, perfeita e
sensual, à vontade do homem que tinha a seu lado. E ele, temendo a hipótese de
um novo desaire, aproveitou o momento da entrega dela, e o seu próprio momento
de exaltação, para lhe varar o corpo à pressa e sem demora. Um grito de dor
intensa encheu o espaço exíguo do anexo. Pronto! Já está, disse Diogo poucos
minutos depois, baixinho, aliviado e feliz pelo desempenho do seu labor. Lá
fora, no exterior da casa, latiu um cão e piou um mocho. Ouvistes?, perguntou a
jovem, com lágrimas no rosto, já ele se havia recomposto. O quê?, quis saber. O
pio de um mocho. Não ouvi nem te inquietes com isso, adorada Raquel. Mas sempre
me disseram que os mochos são aves de mau agoiro, prosseguiu cheia de medo. O
nobre sorriu, deu-lhe um beijo na face e disse que o canto deles tanto podia
ser de mau agoiro como de bom presságio. Mas naquele caso em concreto era
seguramente um sinal de bem-aventurança. Como o sabeis? Foi Deus Nosso Senhor
que mo disse agora, ao ouvido, respondeu o fidalgo, com indisfarçada e terna
ironia.
Perguntai-Lhe então se Ele sabe
do nosso futuro, ou se um dia vireis a abandonar-me. Diogo Pacheco soergueu-se
da esteira, apoiou o corpo nos cotovelos e garantiu que jamais incomodaria o
Altíssimo com tal pergunta, dado que nunca a abandonaria, como de resto nunca a
tinha abandonado. Sois a minha salvação. E tu o meu destino. Raquel voltou a
acariciar o rosto do homem, puxou-lhe o corpo contra o seu, para depois, apaixonados
e enternecidos, se darem em beijos e abraços até adormecerem sobre a marca do
amor exposta no cobertal de linho branco enegrecido.
Lisboa tinha acordado em festa.
Dentro de algumas horas iriam chegar ao Cais da Ribeira as naus da Índia
carregadas de ouro, especiarias, escravos e, sabia-se já, uns tantos animais
estranhos e medonhos destinados a Sua Santidade. Pela extensão do acontecimento
e a dimensão histórica de que o mesmo se revestia, o município decidira, com
uma semana de antecedência, conceder o dia feriado não tanto como preito de
homenagem aos heróicos marinheiros que regressavam do outro lado do mundo, mas em
honra de Deus e do Rei. E, o rei, sempre disponível para transformar qualquer
ocorrência em espectáculo de imponência majestática, decretou para a mesma data
a realização de um cortejo heráldico entre a Sé e o Cais da Ribeira que, em
todos os seus pormenores, se assemelhasse à cerimónia das entradas régias na
cidade, cujo regimento fora por ele mesmo estabelecido em mil quinhentos e
dois. O cortejo, segundo o seu mandado, devia anteceder em terra a chegada dos
navios. Além disso, seriam as celebrações marcadas por uma espécie de grandeza
intemporal, seguramente por uma magnificência superior àquela a que o povo de Lisboa
tinha assistido por ocasião do casamento do desventurado Afonso, filho de João
II, com dona Isabel, filha dos reis católicos de Castela, vinte e três anos
antes.
Nesse sentido, deu instruções
precisas à população para que se procedesse à limpeza das ruas e à ornamentação
das casas, igrejas, tabernas e tavolagens com ramos e flores perfumadas; que se
acendesse fogueiras gigantescas em todas as praças e nas zonas mais elevadas da
cidade; que se lançasse bombardas, tiros de fogo e foguetes; que se formasse
grupos de danças e folias e, concluindo, se divertisse ao som dos sinos e dos
mais variados instrumentos musicais. E porque era assim que o rei Manuel I
queria, foi assim que o povo fez: mobilizou-se, aplaudiu o desejo de Sua Alteza
e, com todo o ardor e devoção, envolveu-se deslumbrado na maior festa jamais
vista em Portugal. De modo que às primeiras horas da manhã de dois de Dezembro, num estado de júbilo contagiante
e perdulário, começaram a convergir na direcção do Cais da Ribeira uns tantos
habitantes; enquanto outros se foram espalhando ao longo do percurso entre o
cais e a Sé. Ninguém quis faltar à convocatória. Padres e put…, cristãos-novos
e cristãos-velhos, sábios e áugures, médicos e feiticeiros, abastados e
indigentes, comerciantes e ladrões, nobres e populares, concorreram juntos,
talvez pela primeira vez na história da cidade, no mesmo sentimento de alegria
e de espanto». In José Manuel Saraiva, Aos Olhos de Deus, Oficina do Livro Editor,
2008, ISBN 978-989-555-364-8.
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