A Idade Média não
é uma época de castelos torreados como os da Disneylândia
«(…)
Uma vez reconhecidas as luzes dos tempos escuros, será conveniente restabelecer
as suas sombras nos casos em que a vulgata dos meios de comunicação nos tem apresentado
uma Idade Média oleográfica, povoada de castelos imaginados pelo romantismo (e
por vezes reconstruídos, em vez de restaurados), e como os vemos, enfim (e
idealizados) em miniaturas muito tardias (do século XV) como em Très Riches Heures du Duc de Berry.
Este fabuloso e espampanante modelo de castelo medieval corresponde mais
aos famosos palácios-castelos do Loire, que são da época renascentista. Quem
hoje procura na internet artigos sobre o castelo feudal encontra esplêndidas
construções com ameias atribuídas (quando o artigo é honesto) aos séculos XII
ou XIV, quando não são reconstruções modernas. Com efeito, o castelo feudal
consiste numa estrutura de madeira erguida numa elevação do terreno (ou num
aterro propositadamente preparado, a mota) e rodeada por uma trincheira
defensiva. A partir do século XI, para maior protecção em caso de cerco, são
construídas muralhas em volta da elevação e, com frequência, simples paliçadas
a delimitar o corte onde, perante o ataque inimigo, podiam refugiar-se os
camponeses do território com os seus animais. Os normandos construirão no
interior da muralha um torreão ou torre de menagem que, além da sua função
defensiva, servia de residência para o senhor e para a guarnição. Gradualmente,
as trincheiras defensivas transformam-se pouco a pouco em fossos cheios de água
que podem ser atravessados por uma ponte levadiça. Mas é uma evolução lenta.
Resumindo, na Idade Média não existiram castelos fabulosos.
A Idade Média não ignora a cultura clássica
Embora
tendo perdido os textos de muitos autores antigos (os de Homero e dos trágicos
gregos, por exemplo), conhecia Virgílio, Horácio, Tibulo, Cícero, Plínio, o Jovem, Lucano, Ovídio, Estácio,
Terêncio, Séneca, Claudiano, Marcial e Salústio. O facto de existir memória destes
autores não significa, naturalmente, que fossem do conhecimento de todos. Um
destes autores podia, por vezes, ser conhecido num mosteiro com uma biblioteca
bem fornecida e desconhecido noutros locais. Havia, no entanto, sede de
conhecimento e, numa época em que as comunicações pareciam tão difíceis (mas,
como vamos ver, viajava-se muito), os doutos procuravam por todos os modos
obter manuscritos preciosos. É célebre a história de Gerberto d’Aurillac, que
depois será Silvestre II, o Papa do ano 1000, que promete a um seu
correspondente uma esfera armilar se ele lhe arranjasse o manuscrito da Farsália de Lucano. O
manuscrito chega, mas Gerberto acha-o incompleto e, não sabendo que Lucano
deixara a obra por terminar, porque fora convidado por Nero a abrir as veias,
envia ao correspondente apenas metade de uma esfera armilar. A história, talvez
lendária, poderia ser simplesmente engraçada, mas revela que também naquela
época estava muito desenvolvido o amor à cultura clássica. O modo como eram
lidos os autores clássicos está, contudo, vergado aos desígnios de uma leitura
cristianizadora, como é exemplo o caso de Virgílio, lido como um mago capaz de
fazer vaticínios e que na Écloga IV
teria previsto o advento de Cristo.
A Idade Média não repudiou a ciência da Antiguidade
Uma
interpretação com raízes nas polémicas positivistas do século XIX defende que a
Idade Média rejeitou todos os achados científicos da Antiguidade Clássica para
não contradizer a letra das Sagradas Escrituras. É verdade que alguns autores patrísticos
tentaram fazer uma leitura absolutamente literal da Escritura no ponto em que
diz que o mundo está feito como um tabernáculo. Por exemplo, no século IV,
Lactâncio (nas Institutiones Divinæ)
opõe-se com base nisso às teorias pagãs da rotundidade da Terra, até porque não
podia admitir a ideia da existência das regiões antípodas, onde as pessoas
teriam de andar de cabeça para baixo. Ideias análogas tinham sido defendidas
por Cosmas Indicopleustes, um geógrafo bizantino do século VI que, pensando também
no tabernáculo bíblico, na sua Topografia
Cristiana, descrevera minuciosamente um cosmo de forma
cúbica, com um arco a cobrir o pavimento plano da Terra». In Umberto Eco
(organização), Idade Média, Bárbaros, Cristãos, Muçulmanos, Publicações dom Quixote, 2010-2011, ISBN: 978-972-204-479-0.
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