«(…)
A minha casa cinzenta, disse eu. Não te lembras, naquele dia em que o gato se
atravessou à nossa frente e o pai deixou o carro ir abaixo? Não. Quando vínhamos
de casa da tia Helen, expliquei. Logo depois de eu fazer cinco anos. Estava a
chover e o pai virou no sítio errado e um gato apareceu à nossa frente na
estrada e ele teve de parar o carro. O meu irmão olhou para mim da mesma forma
que um cientista olharia para um novo e curioso espécime, e abanou a cabeça. Não,
não me lembro de nada. Pois, mas aconteceu, disse eu, obstinada, e o carro
foi-se abaixo precisamente aqui e eu vi aquela casa. Se o dizes. O carro já
estava a trabalhar e o Tom encostou na berma da estrada para eu poder ver
melhor. Que te parece que significa?, perguntei. Significa que a nossa família
tem um azar dos diabos com gatos no Wiltshire, respondeu o Tom. Decidi ignorá-lo.
Gostava de saber quantos anos tem. O Tom inclinou-se mais. Parece-me isabelina.
Ou talvez jacobina. Posterior não é.
Tinha-me esquecido de que o Tom
se interessara especialmente por arquitectura na escola. Além disso, não havia
nada que ele não soubesse. Gostava de ir vê-la melhor. Havia uma nota de
esperança na minha voz, mas o Tom limitou-se a deitar-me um olhar indulgente
antes de voltar para a estrada que levava à aldeia. Não tenciono ir espreitar
pelas janelas de ninguém para satisfazer a tua curiosidade, declarou. Além
disso, há um letreiro que diz Propriedade Privada à entrada que não
deixa dúvidas a ninguém. Um pouco mais adiante, entrámos no parque de
estacionamento do Red Lion, um respeitável pub em estilo enxaimel com um antigo telhado de colmo e mesas dispostas
num terraço improvisado para acomodar a clientela de almoço. Fiquei no carro,
preparada para tomar a minha vez ao volante, enquanto o Tom ia ao pub beber rapidamente uma cerveja e
pedir indicações para retomar a estrada principal. Estava tão absorvida a
pensar nas probabilidades de uma pessoa se perder duas vezes no mesmo sítio que
me esqueci completamente de pedir ao meu irmão para perguntar o nome da aldeia
onde estávamos. Passariam mais oito anos até me encontrar mais uma vez em
Exbury, no Wiltshire.
Desta vez, a última, era o princípio
de Abril, dois meses antes do meu trigésimo aniversário e, excepcionalmente, não
me perdi. Ainda vivia em Londres, num pequeno apartamento alugado em Bloomsbury
onde ganhara raízes apesar de uma herança inesperadamente generosa que Helen, a
tia do meu pai, me deixara, a mesma tia que havíamos visitado em Exeter naquele
passado distante. A tia Helen só me vira em duas ocasiões e, como tal, a razão
por que me deixara uma soma de dinheiro tão exorbitante permanecia um mistério.
Talvez fosse por eu ser a única rapariga numa família conhecida pela sua produção
de descendentes masculinos. Segundo o meu pai, a tia Helen perfilhava convicções
encarniçadamente feministas. Um quarto só para ti, tinha-me dito o Tom, num tom
decidido. Foi o que ela te deixou. Não leste Virginia Woolf? Na verdade, era
muito mais do que o preço de um quarto, mas eu não fazia a mais pequena ideia
do que havia de fazer ao dinheiro. O Tom recusara resolutamente a minha
proposta para dividirmos a herança e os meus pais insistiram que não precisavam
do dinheiro pois viviam confortavelmente desde que o meu pai se reformara da actividade
de cirurgião. E assim foi.
Eu
tinha bastante com que me ocupar, depois de ter mudado de carreira, trocando o design gráfico pela ilustração, uma área
que considerava mais interessante e mais lucrativa. Por um golpe de sorte, tinha-me
associado logo no princípio a um autor muito talentoso e a nossa colaboração
numa série de contos fantásticos para crianças havia-me valido uma excelente
reputação, para não falar de uma fonte de rendimento segura. Ainda nessa
semana, recebera uma encomenda para ilustrar uma nova colectânea de lendas e
contos de fadas de todo o mundo, de dimensão considerável, um projecto que me
entusiasmava bastante e deveria manter-me atarefada durante quase um ano.
Sentia-me na crista da onda. Em regra, teria celebrado a minha boa sorte com a
família, mas, como os meus pais estavam quase no outro extremo do mundo em férias
e o Tom andava ocupado com os ofícios da Páscoa, contentara-me com a segunda
escolha e fora passar o fim de semana com amigos em Bath. Na segunda de manhã, achando
o tráfego na estrada principal demasiado intenso para o meu gosto, fiz um
desvio para norte e segui o suave curso do rio Kennet na direcção de Londres». In Susanna
Kearsley, Mariana, 1994, Edições ASA, 2013, ISBN 978-989-232-168-4.
Cortesia sde EASA/JDACT