«A história do burgo de Mértola foi, desde sempre,
fortemente condicionada por dois factores que moldaram a sua ocupação e a sua
importância ao longo do tempo. Em primeiro lugar, a sua localização
estratégica: implantado no topo de uma elevação ladeada pelo rio Guadiana, a
nascente, e pela ribeira de Oeiras, a poente, possuía excelentes condições
naturais de defesa. Em segundo, o ser ponto extremo da navegabilidade do rio
Guadiana: a montante da vila, o acidente geológico do Pulo do Lobo, com um
desnível de catorze metros, impede a progressão de embarcações para norte, pelo
que Mértola adquire importância fundamental como último porto de acostagem.
Esses factores tornaram-na num importante entreposto mercantil, em permanente
contacto com um vasto território interno e com o Mar Mediterrâneo. Pelo porto
da cidade escoavam-se, por exemplo, o ouro, a prata e o cobre extraídos das
entranhas da faixa piritosa ibérica e os produtos da agricultura das férteis
terras de Beja, e afluíam as gentes de mil paragens e os mais diversos produtos
e artefactos.
Estas características darão a
Mértola um importante papel nos processos históricos subsequentes, pois as
estradas e o rio não transportam somente mercadorias, mas também e, principalmente,
as ideias e as culturas daqueles que as percorrem, influenciando as populações
dos locais que visitam. Quanto maior é o número de visitantes estrangeiros,
quanto mais é facilitado o contacto com eles, maior e mais marcante será a
adopção de outras referências culturais, num sentido largo, e menos conservadora
a sua evolução. Mértola, terra de comércio, é, sem dúvida, um local onde essa
miscigenação deixou marcas relevantes. As escavações arqueológicas que decorrem
na área do forum/alcáçova há mais de trinta anos têm incidido, sobretudo, nos
níveis medievais e modernos, ou seja, numa necrópole que foi usada após a
reconquista cristã até ao século XVII d.C. e, num plano inferior, um bairro do
período islâmico. Apenas nas áreas onde este último registo arqueológico se
encontra bastante destruído foi possível aprofundar a escavação, atingindo-se
desta forma, os níveis mais antigos, nomeadamente o que se refere ao período
paleocristão onde, no início de 2000, se exumaram restos dum grande pavimento
de mosaicos.
Este excepcional conjunto musivo,
sem paralelo em território nacional, vem reafirmar a importância de Mértola nos
finais do Império Romano e na Antiguidade Tardia e a permanência dos contactos
que esta urbe mantinha com o Mediterrâneo. Este período histórico, ainda mal
conhecido, tendo em conta os poucos locais identificados e as escassas
escavações a ele referentes, tem em Mértola um importante conjunto de vestígios
arqueológicos, entre os quais se destacam, o complexo religioso com os seus
dois Baptistérios, as Basílicas do Rossio do Carmo e do Cineteatro Marques
Duque, o Mausoléu e a Torre do Rio. Estas descobertas contribuem
significativamente para um melhor conhecimento de Mértola neste período,
realçando a riqueza desta cidade portuária, capaz de proceder a grandes
programas de obras e de desenvolver, nalgumas delas, apurados trabalhos, com
acabamentos de refinada qualidade artística.
A cidade de Myrtilis
O urbanismo de Myrtilis foi fortemente condicionado pela situação
topográfica pré-existente. A vertente virada ao rio Guadiana implicou que, do
lado nascente e sul, se criasse uma estrutura de contenção das construções
urbanas. Inevitavelmente, a topografia original levou à construção de fortes
muros para suster e criar plataformas habitáveis que, simultaneamente,
constituíam o sistema defensivo da cidade. A muralha actual tem um perímetro de
cerca de 1.291 m e abarca uma área de cerca de 50.000 m2, ou seja, aproximadamente 5 hectares. Neste recinto são
identificáveis quatro acessos que devem corresponder às portas existentes desde
os tempos romanos. Na Antiguidade Tardia, Myrtilis
manteve a sua importância económica e vocação mercantil. Os dados arqueológicos
revelam que a actividade do porto de Mértola não decaiu, facto atestado pelas
diversas importações de cerâmicas do Mediterrâneo oriental». In
Virgílio Lopes, O complexo religioso e os baptistérios de Mértola na
Antiguidade Tardia, Revista Medievalista, Número
23, Janeiro-Junho 2018, ISSN 1646-740X.
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