Templo de Jerusalém. Agosto, ano 70 d.C.
«As cabeças, dúzias delas, voaram
por cima da muralha do templo com um silvo, como um bando de aves desajeitadas,
de olhos abertos e bocas escancaradas, ainda com fiapos de carne a flutuarem
onde tinham sido cruelmente separadas dos pescoços. Algumas caíram no Pátio das
Mulheres e embateram nas lajes enegrecidas com uma espécie de tamborilar
arrítmico, fazendo com que velhos e crianças dispersassem, horrorizados. Outras
chegaram mais longe, passando por cima da Porta Nicanor até ao Pátio de Israel,
onde caíram como gigantescas pedras de granizo em redor do grande Altar dos Holocaustos.
Umas poucas foram projectadas ainda mais longe e embateram contra as paredes e
o telhado do próprio Mishkan, o santuário sagrado no coração do templo, que
pareceu gemer e ressoar sob o ataque como se sofresse de clores físicas. Sacanas...,
murmurou o rapaz entredentes, com lágrimas de desespero a cintilarem-lhe nos
olhos azuis como safiras. Malditos sacanas de romanos!
Da sua posição privilegiada no
alto das muralhas do templo, olhava para o formigueiro de legionários que se
moviam de um lado para o outro abaixo dele, com armas e armaduras a
tremeluzirem ao clarão das furiosas chamas. Os seus berros enchiam a noite e
misturavam-se com o sibilar das catapultas, o ressoar dos tambores, os gritos
dos moribundos e também com o som de barítono dos arremessos dos aríetes, tão
regular como um metrónomo, um som que quase abafava todos os outros e fazia com
que o mundo inteiro parecesse estar a rachar-se lentamente. Tem misericórdia de
mim, oh, Senhor, sussurrou ele, citando o Salmo, pois estou angustiado.
Consomem-se de tristeza os meus olhos, a minha alma e o meu corpo... Havia seis
meses que o cerco se apertava em volta da cidade como um garrote, sugando-lhe a
vida. As legiões romanas, quatro das quais reforçadas por milhares de
auxiliares, tinham avançado inexoravelmente a partir das suas posições iniciais
no monte Scopus e no monte das Oliveiras, rompendo todas as linhas de defesa,
obrigando os judeus a recuar e empurrando-os para o centro. O número de mortes
era incontrolável, gente abatida quando tentava repelir os atacantes ou
crucificada ao longo das muralhas da cidade e no vale de Cédron, onde os bandos
de abutres era tão numerosa, que
ofuscava o sol. O cheiro da morte difundia-se por todo o lado, um fedor corrosivo
e que se sobrepunha a tudo o mais e queimava as narinas como fogo.
Nove dias antes, a Fortaleza Antónia
havia tombado; seis dias depois de os pátios externos e as colunatas do Templo
terem sido muradas. Agora tudo o que restava era o Templo Interior,
fortificado, onde o que ainda subsistia do antigo orgulho da população da
cidade estava esmagado, seres humanos como peixes num tonel, imundos, famintos,
obrigados a alimentarem-se de ratos e roer tiras de couro, e a beber a sua
própria urina, tamanha era a sua sede. Apesar disso, lutavam furiosa e
esperançosamente, lançando pedras e feixes em chamas sobre os invasores, de vez
em quando investindo com impetuosidade contra os romanos numa tentativa de
fazê-los retroceder para fora dos pátios, tudo isso para, enfim, regressar com
ferimentos ainda mais graves. Os dois irmãos mais velhos do garoto morreram na
última dessas surtidas, abatidos enquanto tentavam derrubar uma máquina de
guerra do cerco romano. Tanto quanto ele sabia, as suas cabeças mutiladas deviam
estar entre as que tinham sido catapultadas por cima das muralhas para o
recinto do Templo. Vivat Titus! Vincet Roma! Vivat Titus!
As vozes dos romanos elevavam-se numa ruidosa
vaga de som, gritando em coro o nome do seu comandante, o general tito, filho
do imperador Vespasiano.
Pela muralha, os defensores ensaiavam um brado em resposta, evocando os nomes
dos seus próprios líderes: João Gischala e Simão Bar-Giora. Mas o clamor era
fraco, pois as suas bocas estavam ressequidas e os pulmões enfraquecidos; e, de
qualquer maneira, era difícil dar o sangue por homens que, conforme os boatos,
já haviam firmado um acordo com os romanos em troca das vidas. Eles mantiveram
o brado por quase um minuto, e então as suas vozes foram diminuindo
gradualmente». In Paul Sussman, O Último Segredo do
Templo, 2005, Bertrand Editora, 2016, ISBN 978-972-253-056-9.
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