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A
Gruta
«(…) Os espíritos dos
antepassados não gostariam de me ver ali, explicou ele. Seriam contados
segredos. Havia coisas que eu não devia saber. Truculentamente, pensei para comigo:
se não souber aqui, esta noite, as coisas secretas, é possível que nunca venha a
sabê-las. Era agora ou nunca. Fora da cubata, um grupo de anciãos estava a olhar
ansiosamente para o céu da noite, esperando sinais de chuva. Sevias sentou-se ao
meu lado, encostado à parede. O seu rosto enrugado mostrava sinais de preocupação.
A sua preocupação não era apenas a chuva ou a falta dela, embora isso fosse uma
questão crucial tanto para ele como para os outros, na verdade, era a sua própria
vida e a da sua família que dependia disso, mas também eu e o meu desapontamento
por não ser admitido em todos os segredos tribais. Já lhe tinha dito que o meu trabalho
de campo não tinha rendido tanto como esperava.
De cabeça inclinada e com as mãos
postas num gesto de súplica, perguntou-me com o esboço de um sorriso: Mushaví,
achaste o que procuravas no tempo que estiveste connosco? Distinguia-me muitas vezes
com o elogioso nome tribal Mushavi, que geralmente os lembas usam só entre
eles e que pensei que talvez pudesse estar ligado a Musawi, a forma árabe
de seguidor de Moisés (Musa). Talvez estivesse a tentar seduzir-me chamando-me
Mushavi, mas o resto da sua pergunta era incompreensível. Ele sabia perfeitamente
que os segredos tribais ainda estavam, na sua maioria, intactos. Sorri e, com
toda a paciência que consegui reunir, disse: sabe muito bem, Sevias, que ainda há
muitos segredos que não me contou. E não se esqueça de que os anciãos de todos os
clãs concordaram em que me devia ser dado acesso a tudo.
Sim, respondeu ele gravemente, mas
já lhe expliquei muitas vezes que independentemente do que foi dito nessa reunião
dos clãs, há coisas que não podem ser contadas fora da irmandade dos iniciados.
Orações, feitiços, encantamentos. Muitos dos nossos segredos não podem ser
revelados. Dissemos-lhe isso. O meu irmão, o chefe, disse-lhe isso. Os outros
disseram-lhe isso. Teriam de o matar, Mushavi, se aprendesse essas coisas
sagradas. É a lei. O seu rosto enrugado tornou-se quase uma expressão de preocupação
e ansiedade. Sevias era um homem bom. Em todos os meses que tinha passado no seu
kraal, apesar da seca e da incerteza da situação política, tanto dentro da
tribo como no país em geral, apesar das dificuldades da família, sempre tinha sido
calmo, amável e digno. Percebi agora que nunca tinha sido mais feliz na minha vida
do que quando estava sentado a escrever debaixo da árvore grande no kraal de Sevias.
Esfregou os pés nus e endurecidos na terra ressequida. Mas quanto aos objectos tribais?,
insisti eu. Aquelas coisas que trouxe consigo do norte, de Senna. Falaram-me
nisso mas ainda não vi nada disso.
É verdade, disse ele. Trouxemos objectos
de Jerusalém há muito tempo e trouxemos objectos de Senna. Objectos sagrados, importantes,
de Israel e de Senna. Senna era a cidade perdida original em que a tribo
mantinha que tinha habitado depois de sair da Terra de Israel. O professor M.E.R.
Mathivha, o chefe erudito da tribo lemba da Africa do Sul, já me tinha contado muita
coisa acerca da lenda de Senna. A tribo viera de Senna pelo mar. Ninguém
sabia onde era. Tinham atravessado Pusela, mas também ninguém sabia onde era ou
o que era. Tinham vindo para África, onde reconstruíram Senna duas vezes. Em suma,
foi isso.
Sevias,
insisti eu, não pode, pelo menos, dizer-me o que aconteceu aos objectos tribais?
Ele estudou o céu e não disse nada. Depois, murmurou: a tribo está espalhada por
uma vasta área. Sabe, uma vez infringimos a lei de Deus. Detestamos ratos, que são
proibidos para nós, e fomos espalhados por Deus pelas nações de África. Assim, os
objectos espalharam-se e estão escondidos em diversos locais. E o ngoma?
Onde pensa que possa estar?, perguntei eu. Era um tambor de madeira usado para
guardar objectos sagrados. A tribo tinha seguido o ngoma,
transportando-o aos ombros, na sua visita à África. Afirmam tê-lo trazido de Israel
há tantos anos que ninguém se lembra quando. Segundo as suas tradições orais, levavam
o ngoma à frente deles para combater e ele tinha-os guiado na sua longa
caminhada através do continente». In Tudor Parfitt, A Arca Perdida da Aliança,
2006, Livros d’Hoje, Publicações dom Quixote, 2008, ISBN 978-972-203-541-5.
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