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A
Europa e eu
«(…) Ao longo de dezenas de
Natais, a minha sobremesa preferida foi o bolo-rei. Não tanto pelo paladar da massa,
mas por ambicionar sentir na boca o embrulho de papel contendo o presente. Aos 8
anos, já sabia que o oiro das figuras, ursos, galos e patos, era falso, mas a descoberta
não retirou um grama de prazer ao que sentia. Era como jogar a lotaria sem ter tido
que comprar o bilhete. Como tudo o resto, o fascínio pelo bolo-rei foi diminuindo
com a idade, mas, durante anos, continuei a esperar que me calhasse, não a fava,
mas o brinquedo. Há dias, notei que este desaparecera. Até ler o Diário de Notícias,
de 31 de Dezembro último, pensei que a culpa seria de um qualquer cozinheiro. Erro
meu. O facto deve-se a uma norma da União Europeia, a qual terá entendido que os
presentes do bolo-rei são nocivos à saúde, pelo que decidiram proibi-los. Apesar
de atónito, o dono da Confeitaria Marquês de Pombal tentou explicar o gesto ao repórter:
a medida seria destinada não só a evitar o risco de os presentes serem engolidos
pelos consumidores, como, e mais importante, de os materiais usados poderem vir
a deteriorar o bolo. Num momento em que a União Europeia está a braços com um país,
o Irão, em vias de adoptar armas nucleares, será que não tem mais a fazer do que
meter o nariz nos bolos tradicionais? Possuirá o EUROSTAT estatísticas de tal forma
aterradoras sobre o número de mortes provocadas pela ingestão do bolo-rei que a
medida se tornou urgente? É a isto que se reduz a actividade dos funcionários que
trabalham em Bruxelas?
Vale a pena reflectir sobre a transformação
do sonho europeu: o que é hoje a União Europeia, uma democracia, uma oligarquia
ou uma ditadura colectiva? Se pensarmos na pouca influência que o Parlamento
europeu tem, não é seguramente uma democracia. Note-se que o poder da União é detido
pela Comissão, uma casta formada por altos funcionários, que não respondem
perante ninguém, e pelo Conselho, que se entretém a defender os interesses nacionais,
com preponderância para os dos agricultores franceses. O Parlamento europeu
transformou-se numa espécie de clube onde se debatem coisas a que ninguém dá importância.
Nos países onde as instituições parlamentares desempenham um papel relevante,
não há político que, ao seu, prefira aquela tertúlia. Pobre e pagando pobremente
aos seus deputados, Portugal é dos poucos países-membros onde existe uma bicha de
gente desejosa de tomar o avião para Bruxelas. Visto do cantinho, o posto, que
dá dinheiro, secretárias e viagens, é apetecível. A União Europeia nada mais é do
que uma oligarquia dominada pela Alemanha e pela França.
A recente votação sobre a
Constituição Europeia em França e na Holanda foi inesperada. O facto de a
França, logo a França!, ter optado pelo não desesperou os comissários,
forçados a reconhecer que os eleitores não gostavam tanto de Bruxelas quanto pensavam.
A consequência foi positiva: a ideia de um Estado federal, um pesadelo corporativo,
entrou em coma. Os políticos favoráveis à opção maximalista foram obrigados a reconhecer
que as nações não são aves migratórias, mas entidades baseadas num território, numa
tradição e numa cultura.
Por ter nascido num país onde a tradição
liberal nunca encontrou raiz, tenho-me interrogado sobre qual, o tirano distante,
de Bruxelas, ou o tirano próximo, do Terreiro do Paço, será o menor dos males. Diante
do que sucedeu ao bolo-rei, encontrei a resposta. Prefiro o poder à beira Tejo.
Pelo menos, a este posso atirar pedras. O que não me impede de continuar a pensar
que uma Europa alargada é desejável. Aprecio viver num espaço em que é possível
às ideias, ao comércio e às gentes circularem livremente. Mas não quero ter de aturar
um supra-Estado que mande em tudo, até no bolo que como pelo Natal. A minha Europa
não é a dos senhores comissários de Bruxelas, mas a de Mozart e de Mahler, de Eça
e de Eliot, de Turner e de Turgueniev, isro é, uma Europa culta, livre e dinâmica».
In
Maria Filomena Mónica, Confissões de uma Liberal, Quasi Edições, 2007, ISBN
978-989-552-274-3.
Cortesia de QuasiE/JDACT