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«O
monstro morreu: em seu lugar nasceu
uma menina que era sozinha». In Clarice Lispector
Desobediência
«(…) Vínhamos da praia pelo sol
do meio-dia. Muito magra e loura, ela distanciava-se de mim a distrair-se com
tudo à sua roda, naquele jeito que ainda guardava de adolescente bravia e
cintilante. Na véspera tinha havido uma ligeira névoa a nimbar o céu de anil,
tecida por uma fina e translúcida humidade que subia do mar em dias de marés
vivas. Ah!, suspirou, num sussurro de satisfação desmedida… Cheirávamos a mar e
a sol e íamos deixando atrás de nós rastos irregulares de areia fina e irizada.
As duas semicerrando os olhos azuis cheios de lágrimas, devido à claridade
excessiva que nos atordoava. Lembro-me de que naquele começo de tarde eu
seguia-a repetindo e também inventando baixinho palavras sem sentido, numa
melopeia dolente que me instigava, espécie de jogo de melodias por vezes dissonantes
no qual me envolvia e voava, sandálias a balouçarem na ponta dos dedos, um dos
pés descalço na berma do passeio e o outro logo abaixo no chão de terra batida.
Saltitando. Foi então que ouvi dizer, reticente: calça as sandálias, Lucinha…
Olhei-a e vi-a num
cintilar de beleza aturdida, a fitar alheada o horizonte, e pensei: se calhar não foi ela que falou.
E procurei à volta quem me teria dado aquela inesperada ordem, enquanto
continuava a andar saltando como antes, embora já desconfiada. Mas ela tornou
com uma pequeníssima mas aguçada ponta de irritação no tom de voz, mesmo assim ainda
inalterada: calça as sandálias, Lucinha.
Foi quando o coração
me desandou no peito, e pela primeira vez nos meus dois anos a fazer-me crescer
para além da idade que tinha, num sobressalto do qual nem sequer sabia o
significado, primeiro estranhando o próprio sentir, mas de imediato dando conta
de um secreto entusiasmo de menina teimosa, como me chamavam quando queriam
obrigar-me a obedecer sem recalcitrar, ainda esvaziado de qualquer pensamento
de acinte. E prossegui a saltitar descalça, adorando a brasa do calor na planta
dos meus pés nus. Então a minha mãe puxou-me pelo pulso magrinho de menina frágil,
dedos frementes com a dureza férrea e fria da algema. E com uma voz de gume
implacável, desconhecida de ambas, repetiu pela terceira vez: calça as
sandálias, Lucinha!
Olhei-a nos seus grandes olhos lápis-lazúli inundados de luz e
limitei-me a abanar negativamente a cabeça, seguindo descalça ora em bicos de pés
ora numa corrida curta mas rápida que acabava rodopiando num salto; e no
segundo seguinte estava a repetir tudo de novo, como um pássaro desejando pela
primeira vez levantar voo. Implacável, ela começou a perseguir-me, e eu cada
vez mais rápida tentava distanciar-me, empolgada com aquela sensação que sempre
me provoca a desobediência, e que então sentia pela primeira vez. Furiosa,
tentou agarrar-me e puxar-me a si, mas eu desenvencilhei-me do aperto do seu
abraço e do perfume de onda que a minha mãe guardava no louro dos cabelos
ondulados e ainda molhados de oceano, fugindo com ela no encalço.
Desse modo fomos até
casa, onde entrei como uma flecha pela porta que a minha avó todos os dias àquela
hora nos deixava entreaberta. E assim correndo atravessámos corredor, quartos e
salas, de ponta a ponta, eu a escapar-lhe sem olhar para trás, magrinha, ágil,
e a minha mãe a perseguir-me com o seu canto de sereia zangada. Até que chegou
o momento em que me vi encurralada, entre ela que se aproximava veloz e a
imensa parede branca e lisa à minha frente. Então, para seu grande espanto e
perplexidade, de pura raiva desobediente, comecei a trepar pela parede como um
pequeno animal perseguido, a marinhar com determinação, a fim de chegar ao
tecto, ao cimo, ao topo, como se subisse a encosta íngreme de uma montanha, pequena
alpinista ousada.
Primeiro uma mão e depois a outra, pernas finas e longas abertas
em leque, a fugir aos dedos que ela deveria estar a estender para me arrebatar
na fuga, a fim de me colocar de volta ao soalho. Menina perecível que eu era,
como uma borboleta, sentia-me um anjo, como me chamava a avó, que escutava
vozes, via pessoas mortas e contactava com galáxias longínquas, como a Andrómeda.
Eu preferia parecer-me com um anjo, em vez de ser uma menina…, imperceptível. Entretanto,
ouvindo a respiração ofegante e entrecortada da minha mãe, parada atrás de mim,
também me imobilizei, expectante, a sentir o cheiro da cal da parede à minha
frente, e o odor a sal do mar dos meus braços erguidos a desejarem levar-me até
ao tecto, enquanto as mãos pequenas ansiavam por escorregar, a conduzirem-me de
volta ao chão. E muito quieta, fiquei a meio da parede, como um pequeno insecto
ou, vista de longe, talvez apenas uma mancha mais escura, de menina inverosímil.
Foi quando ouvi a minha mãe dizer com voz de grande aflição estupefacta: desce daí Lucinha, como já estamos em casa não
precisas de calçar as sandálias». In Maria Teresa
Horta, Meninas, Publicações dom Quixote, 2014, ISBN 978-972-205-611-3.
Cortesia de PdQuixote/JDACT