Ilha
de Hispañola. Natal de 1511
«(…)
Ousarei confessar que nesta espécie de presente permanente vivo em paz como nunca?
Liberto do cansaço de sonhar, uma vez que Cristóvão se foi deste mundo, mas
também isento dos remorsos que a multidão dos meus pecados haveria de engendrar.
Naquele domingo, o primeiro do Advento de 1511, acordámos juntos, a cidade e eu.
Gosto deste palácio pelas suas pedras de coral que deixam passar os sons. Ouço
primeiro as aves que saúdam o regresso da luz, depois os homens a tossir e a escarrar;
os cavalos a resfolegar; a chiadeira das carroças; os primeiros rangidos das serras.
Chega uma caravela. Reconheço de ouvido qual a vela que recolhem, em que parte do
porto vai atracar. Os cães ladram. Continuarão a ladrar cada vez mais alto até serem
alimentados. Já mexe um novo dia, pesadamente, como um barco que se afasta do cais.
A cada um destes novos dias digo da minha gratidão por ele me aceitar a bordo. E,
sem prever os ataques que iriam dentro em pouco devastar a minha alma e arrasar
a minha serenidade, parti para a igreja. Começou a missa.
Difícil rezar na minha situação:
sentado na primeira fila, entre o Vice-Rei Diego e a sua mulher, Maria Toledo, tinha
todos os olhares virados para mim. Deus me perdoe. Em vez de me dirigir a Ele e
só a Ele, não parava de responder aos cumprimentos. De súbito, sobressaltei-me.
Um dominicano tinha subido para o púlpito e começava a sua homilia:
Eu sou a voz de Cristo que clama no
deserto desta ilha... Eu sou a voz de Cristo que clama no deserto desta ilha [...]
esta voz diz que estais todos em estado de pecado mortal por causa da crueldade
e da tirania de que usais para com este povo inocente.
De frase em frase, a voz ia ganhando
força e distinguiam-se melhor as palavras. Dir-se-ia que se transformavam
noutras tantas pedras lançadas aos nossos rostos.
Dizei-me, por via de que direito e
de que justiça mantendes estes Índios em tão cruel e horrenda servidão? Quem vos
autoriza a fazer tão detestáveis guerras a estes povos que vivem pacificamente
na sua terra, onde perecem em quantidade infinita? [...] Porque os mantendes em
tal estado de opressão e de esgotamento, sem lhes dar de comer nem os cuidar na
doença de que sofrem e morrem por causa do trabalho excessivo que deles exigis,
matando-os tão-só para dia após dia extrairdes ouro? Estes Índios, não são eles
homens? Não têm razão, não têm alma? Não devíeis amá-los como a vós mesmos? [...]
Porque mergulhastes num tão profundo sono letárgico? Tende por certo que no estado
em que vos encontrais tereis tanta salvação como os Mouros e os Turcos que recusam
a fé de Jesus Cristo.
Tal foi o sermão desse dia de frei
António Montesinos. Perante todas as autoridades de Hispañola e todos os encomenderos,
aqueles espanhóis a quem tinham sido dadas as terras dos Índios juntamente com índios
para as cultivar. A estupefacção da assistência depressa deu lugar à cólera. Os
olhares iam e vinham entre o pregador que ia encadeando estas palavras terríveis
e o vice-rei que tentava conservar um semblante de impassibilidade. Foi necessário
toda a autoridade do padre oficiante para que a missa terminasse sem revolta dos
fiéis.
Mal regressou ao nosso palácio, o
Vice-Rei convocou esse dominicano de quem ninguém até então tinha ouvido falar e
dirigiu-se-lhe nesta linguagem paternal: qualquer um de nós, se estiver mal informado,
pode ver-se levado a proferir contraverdades. Não iremos acusar aquele que mergulhou
no erro por causa de uma informação imperfeita. No caso vertente, a informação em
falta era que o trabalho dos Índios era necessário à boa exploração da ilha, logo,
à glória de Espanha. Por conseguinte, o pregador, cujo talento, aliás, todos admiravam,
cuja comoção compreendiam, não poderia, no domingo seguinte, agora que já estava
completamente informado, deixar de pronunciar um sermão de natureza inteiramente
diferente do anterior e que devolveria à população uma paz a que Sua Majestade o
Rei tinha em particular apreço...» In Erik Orsenna, 2010, A Empresa das Índias,
Teorema, 2011, ISBN 978-972.
Cortesia de Teorema/JDACT