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O Algarismo e o Número
«(…) A récua de azémolas estava preparada para
sair de Burgos. O bispo Maurício encabeçava a comitiva que a rainha Berenguela encarregara
de ir buscar a princesa Beatriz, a noiva do rei Fernando. Várias mulas
carregadas com fardos e dezenas de soldados bem apetrechados aguardavam o bispo
à porta do palácio episcopal, mesmo ao lado da catedral. O bispo saiu do palácio
trazendo um chapéu de viagem de abas largas enterrado na cabeça. Subiu para o
lombo de uma mula com a ajuda de um criado e, com um sinal de cabeça, indicou
ao capitão da guarda que podiam partir. O chefe da guarda levantou o braço
direito e ordenou a partida com energia.
Junto ao bispo cavalgavam os abades de San
Pedro de Arlanza e de Rio Seco, o camerario de San Zoilo de Carrión, o
mestre da Ordem de Santiago e o prior da Ordem do Hospital em Castela. Tinham-se
concentrado dezenas de burgaleses ao longo da rua dos peregrinos, que ia da
porta de Santo Estêvão até à catedral e cujo traçado correspondia a uma parte
do Caminho francês para Compostela. Teresa e Arnal Rendol tinham acorrido a
presenciar a marcha da comitiva. A menina olhou para o pai, puxou-o pela manga e
perguntou: onde vão todos estes soldados? Vão buscar uma princesa. Dentro de
uns meses o nosso rei Fernando casar-se-á com ela, e será a nova rainha de
Castela. As rainhas elegem-se? Sim, claro. Elegem-nas os reis, ou as mães e os
pais dos reis. E como se elege uma rainha?
Pois depende, mas é preciso que a sua
posição se ajuste à do futuro esposo, o rei, e, portanto, que seja de sangue
real, que possua terras e riquezas, que disponha de servos e vassalos... Então,
eu nunca poderei ser rainha? Claro que sim, pequena, tu és a minha princesa, a minha
rainha. O bispo Maurício, da sua mula, abençoava solenemente os burgaleses, que
se benziam à sua passagem. Nos seus olhos vivazes percebia-se um certo orgulho por
ter sido designado para custodiar a futura rainha de Castela e a conduzir até Burgos.
Tinha pela frente muitas semanas de caminho e ansiava pelo momento de regressar,
mas por outro lado ardia em desejos de voltar a ver Paris, Chartres e Reims, as
cidades do Norte de França que já visitara vários anos antes e em cujas escolas
aprendera o valor da retórica e a utilidade da filosofia. Mas, sobretudo, ansiava
contemplar as portentosas catedrais que estavam a construir os seus colegas
bispos e ansiava por ser o primeiro bispo a pôr em marcha a construção de uma daquelas
fabulosas construções seguindo o novo estilo do arco ogival. Ao deixar para
trás a sua catedral, esta pareceu-lhe uma igreja pesada e antiga. Era um edifício
grande, o maior da cidade, mas o seu aspecto resultava demasiado maciço,
escuro, muito diferente das catedrais cheias de luz que tinha visto construir nas
florescentes cidades do Norte de França.
A rainha Berenguela
tinha-lhe dito que o casamento deveria ser celebrado antes de acabar o ano de 1279,
de modo que o bispo Maurício dispunha de uma certa margem para viajar até Paris
e poder entrar em contacto com algum dos grandes mestres e, inclusivamente, combinar
já o início da nova catedral que tanto ansiava construir». In
José Luís Corral, O Número de Deus, 2004, O Segredo das Catedrais Góticas,
Planeta Editora, Lisboa, 2006, ISBN 972-731-185-7.
Cortesia de Planeta Editora/JDACT