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«(…) Só me resta voltar ao ponto de
partida, esperar que os acontecimentos lançados por meus tios determinem o que vou
fazer. Já não os vejo. Só o rapaz dos cavalos varre agora o chão molhado. De novidades
não sabe: está tudo na mesma, não me disseram mais nada; e meus tios?; entraram
por ali... Indica-me a passagem para os claustros, por onde ambos metemos a
primeira vez. Mas vencido o lanço de escadas, feito um troço do passadiço de cerâmica
vidrada, não avisto Juan nem Soledad. A porta de acesso à planta superior e às adegas,
na de baixo, continua aberta. Gente, pouca. Nem dona Isabel aparece na varanda
da sala de bordar. E como poderia, se para lá chegar teria de descer as escadas,
atravessar o Salão do Trono, falar aos convidados? O mais certo é aproveitar o
silêncio, para forrar o coração de lembranças aconchegantes de Zaragoza, o paço
de Aljaferia, trinado de pássaros no roseiral colado às câmaras privadas, murmúrio
de fontes nos vergéis em redor. Lembranças boas, sublinhadas com a memória do sol
que debruava os telhados do palácio. E dou comigo a desejar que o passado recente
lhe atenue o silvo de angústia, que deve manchar a fria claridade desta manhã de
Inverno.
Sento-me no bordo da cisterna, a lançar
seixos pequenos para o fundo. Lá em baixo, nos círculos concêntricos de líquido
escurecido, abrem-se veredas frescas com recendor a rosas e mirto, as vestes airosas
da infanta de cabelos soltos, ainda da cor do trigo antes de amadurar. Fez doze
anos nos finais do mês passado, a idade temida pelas princesas a quem os pais destinam
varão coroado. Há seis via morrer o avô, que a criara desde o nascimento. E nesse
momento apagavam-se as estrelas que ele plantara no seu caminho de infância.
Havia sempre trechos de O Livro dos Feitos, estranha crónica do nascimento
de Jaime, em Montpellier, onde fora criado pelo inquisidor Simon de Montfort, a
pedido do pai. Mais tarde seria reclamado pelos templários, como legítimo herdeiro
da coroa de Aragão e Catalunha. Uma história complicada, que parte da nobreza e
a Santa Sé queriam remediar, confiando aos monges o resgate da criança. A gente
do Templo levou-o então para Monzón, onde seria educado para rei predestinado à
glória, com apenas oito anos.
Cedo o casavam com Leonor de Castela,
de quem nasceria Afonso, morto ainda mancebo. Mas os desentendimentos
constantes do casal levariam à anulação do enlace. Entre as possíveis noivas Jaime
viria a escolher Yolanda da Hungria, de quem teria oito filhos, entre eles os varões
Pedro, pai de dona Isabel, a quem caberiam Aragão, Catalunha, Valência e Jaime,
rei de Maiorca e conde de Montpellier. As duas infantas que chegaram a rainhas
eram dona Isabel, casada com Filipe III de França, e dona Violante, mulher de Afonso
X de Castela, avô do monarca Dinis I por linha materna.
Dizia
meu tio Ángel que chamavam santa a Isabel, duquesa da Turíngia, irmã da rainha Yolanda.
Até Francisco de Assis, grato por ela ter cedido um pequeno convento aos mendicantes,
por fazer uma vida simples, entregue a obras de caridade. Gostava de cultivar rosas.
Chegou a mandar as espécies mais raras para o paço de Zaragoza, onde a neta da irmã,
a quem deram o seu nome, aprendeu a conhecê-las, a vigiar-lhes maleitas desde a
mais tenra infância. Um dia, com a mão enrugada na cabeça da neta, Jaime lamentava
não ter mais uns anos de vida para poder levá-la ao altar. Isabel não teria alcançado
que o avô lhe anunciava a morte, ávida por colher mais impulsos de mistério nas
histórias de vida que ele lhe confiava no paço de Aljaferia. Mas na noite seguinte
ouvia a revelação, quando aguardava mais um trecho do livro. O avô preparava-se
para partir umas horas depois...» In Maria Helena Ventura, Onde Vais Isabel,
Saída de Emergência, 2008, ISBN 978-989-637-034-3.
Cortesia
de SdeEmergência/JDACT