A Carreira na historiografia moderna
«(…) Chegados a este ponto revelou-se-nos
um novo trabalho, que pensamos ser pouco conhecido, mas que introduz uma série
de novas questões e problemas. Sem dúvida que a vontade e o caminho a percorrer
é ainda grande e T. B. Duncan decidiu dar um passo importante. Duncan utiliza uma
série considerável de relações das armadas num esforço importante de cruzamento
da informação dispersa por todas elas. Devido à natureza do trabalho ou aos objectivos
do mesmo não existem referências às metodologias seguidas. Aqui surgem diversas
interrogações. Duncan elabora uma série de cálculos que são, no mínimo, instáveis
devido às bases indicadas pelo próprio. O factor mais relevante e inovador neste
estudo é um cálculo da tonelagem média. O autor baseia-se em séries manifestamente
incompletas (vinte e seis armadas no período de 1500-1578 que correspondem a um
terço do total), retirando daí todo o tipo de conclusões. Já outros tentaram fazer
este tipo de análise e debateram-se sempre com a enorme irregularidade das séries
estatísticas. Outro problema que parece ter ficado esquecido é a enorme
heterogeneidade das armadas e da própria arqueação dos navios que as compunham.
Daí que a elaboração de séries e médias, alargadas e definidoras de padrões, tenha
ainda hoje uma base muito insegura.
Duncan não fica por aqui e calcula
não só o número de passageiros como até o de escravos a bordo, partindo de uma relação
entre indivíduos e tonelagem que é a nosso ver discutível. O próprio reconhece a
dificuldade nestes cálculos mas isso não o impede de fazer generalizações e extrapolações
para corroborar as suas ideias. Esta tendência serial, e, diríamos, quase contabilística,
estende-se a outros campos, igualmente duvidosos, como a mortalidade a bordo ou
o efeito de despovoação que a Carreira da Índia exerceu sobre o Portugal metropolitano.
O que se critica aqui não são os métodos ou o caminho que o autor toma na sua investigação,
mas sim as generalizações e a homogeneização de uma quantidade apreciável de factores
quando sabemos que os dados são incompletos e, principalmente, na maioria dos casos,
não sequenciados. A grande virtude deste trabalho é que, através das suas omissões
ou da sua inusitada generosidade para com os números, nos vem alertar para uma série
de dados e factores que têm sido pouco explorados.
Um estudo mais recente tem vindo a
ser desenvolvido por António Lopes, Eduardo Frutuoso e Paulo Guinote. A
consistência ao nível das fontes é abalada por uma fundamentação metodológica nem
sempre clara. Em primeiro lugar, não são definidos os critérios de escolha das
fontes ou até de separação das diversas dúvidas ao nível do movimento dos navios.
Os autores referem, apenas, que fizeram um levantamento, o mais exaustivo
possível, e que cruzaram toda a informação por forma a obter dados definitivos.
O segundo problema surge com o cruzamento dessa mesma informação e com o facto de
os autores não nos dizerem como chegaram ao nome de certos navios, certos capitães
ou certas datas quando estas surgem de forma muito diversa nas diferentes relações.
Outro problema revela-se ao nível da separação do ritmo das partidas e chegadas
ao longo do ano (quer a Lisboa, quer ao Índico), tal como Vitorino Magalhães Godinho
já tinha realizado. Falta também uma análise mais profunda e diferente das causas
dos naufrágios com uma clara separação entre causas principais e secundárias. É
que se existe uma causa imediata para o naufrágio (encalhe, afundamento ou incêndio),
podem existir outras que provocam essa mesma perda e que no final têm um peso relativo
forte. A divisão simples das causas pode, por vezes, distorcer e ampliar erros,
não permitindo o apuramento de outros dados que podiam vir a revelar-se como muito
interessantes.
O factor de maior surpresa é o recurso
a uma obra como Três séculos no mar, que não apresenta valor científico
para a maioria da sua informação. Apesar de na introdução se dizer ser um trabalho
de investigação histórica, a ementa agora apresentada é um registo de notícias da
vida dos navios do período brigantino organizado principalmente através de pesquisa
nos Arquivos de Goa, da Marinha e das Colónias e apresentado em forma de inventário,
de modo a mostrar a influência do elemento naval na vida militar, política e
social de Portugal naquela época, este não é um trabalho histórico na
medida em que não cumpre regras básicas de rigor científico como a apresentação
de fontes ou a simples fundamentação da informação. Se não duvidamos da boa vontade
e honestidade dessa informação também nada temos que comprove esse facto já que
as referências, documentais ou bibliográficas, surgem apenas esporadicamente
para alguns navios dos finais do século XIX». In Rui Landeiro Godinho, Aspectos
e Problemas da Torna-Viagem (1550-1649), Fundação Oriente, Orientalia, 2005, ISBN
972-785-058-8.
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