As
Cruzadas
«O
ano da graça de 1150, quando os hereges sarracenos, a
escória da terra e a guarda avançada Tio Anticristo infligiam aos nossos muitas
derrotas na Terra Santa, o Espírito Santo desceu sobre a senhora Sigrid e deu a
ela uma revelação que mudou a sua vida. Talvez se possa dizer, também, que essa
revelação conduziu a uma situação que encurtou a sua vida. Com certeza sabemos
que ela jamais voltou a ser a mesma. Menos certo é aquilo que o monge Thibaud
escreveu muito mais tarde, de que, no momento em que o Espírito Santo apareceu
diante de Sigrid, surgiu na realidade o que seria o início de um novo reino na
Escandinávia, ao norte da Europa, reino que mais tarde viria a se chamar
Suécia. Tudo aconteceu durante a Festa de São Tibúrcio, em meados de Abril, num
dia que passou a ser considerado como o primeiro dia de Verão e em que o gelo
começava a derreter na província de Gotaland Ocidental. Nunca antes se juntou
tanta gente num dia como esse em Skara, isso porque a missa não era uma missa
comum, mas a que iria assinalar, finalmente, a inauguração da nova catedral. As
cerimónias já decorriam na sua segunda hora. A procissão já dera três voltas à
igreja, num ritmo infinitamente lento, pelo facto de o bispo Õdgrim ser muito
velho e se arrastar, como se cada passo fosse o seu último. Além disso, ele
parecia um pouco confuso, pois leu a
primeira oração em linguagem popular em vez de em latim: Meu Deus, Tu que invisivelmente cuidas de
tudo, mas que para salvação das pessoas fazes o Teu poder visível, assume esta
Tua casa e domina neste templo, assim, todos aqueles que se reúnem aqui para
rezar vão poder receber o Teu conforto e ajuda.
E naquele momento, sem dúvida, Deus fez visível o Seu
poder, quer tenha sido para gáudio das gentes ou por qualquer outro motivo. Foi
um espectáculo que ninguém jamais vira em toda a Gotaland Ocidental, foram as
cores brilhantes da roupagem dos bispos, em seda vermelho-escura, com listras
douradas e azul-claras, foram os aromas estonteantes dos incensórios à volta
dos quais os cachorros giravam, e como eles balançavam, e foi a música tão
celestial que nenhum ser na Gotaland Ocidental podia ter ouvido antes coisa
semelhante. E ao olhar para cima era como se a gente visse o céu, se bem que
estávamos sob o tecto da igreja. Era incompreensível que até mesmo os construtores
borgonheses e ingleses pudessem ter erguido claustros tão elevados sem que tudo
não caísse de uma vez, se não por outro motivo, por Deus ter ficado zangado diante da
pretensão de tentar construir qualquer coisa até lá em cima, até Ele. A senhora
Sigrid era uma mulher prática. Alguns, por isso mesmo, achavam que ela era
durona. Ela não teve nem um pouco de vontade de se meter a caminho e fazer a
difícil viagem para Skara, porque a Primavera chegara cedo e os caminhos
ficaram um lamaçal só e ela se preocupou diante da ideia de se sentar numa
carruagem, balançando de um lado para o outro, no abençoado estado em que
estava. Mais do que qualquer outra coisa na vida terrena, ela receava o
nascimento para breve da sua segunda criança. E sabia muito bem que,
tratando-se da inauguração de uma catedral, isso significaria ficar de pé no
chão de pedra e, de vez em quando, ajoelhar-se para rezar, o que para ela, no
seu estado, seria uma tortura. Ela era bem versada, certamente melhor do que a
maioria dos fidalgos e das filhas deles à sua volta nesse momento, no que dizia
respeito às muitas regras da vida religiosa. Essa capacidade ela não tinha
obtido pela fé ou por vontade própria. Mas, quando tinha dezasseis anos, seu
pai, não sem uma boa razão, chegou à conclusão de que ela nutria um interesse
exagerado por um parente da Noruega, de berço excessivamente menor, um
interesse que só poderia resultar em casamento. Foi assim que, severamente, seu
pai encarou o problema. E assim ela foi mandada durante cinco anos para um
mosteiro na Noruega, e teria ficado por lá para sempre se não tivesse recebido
de uma tia sem filhos uma herança na província de Gotaland Oriental e, por essa
razão, ter-se transformado em alguém que podia casar, não importando com
quem, de preferência a ficar enclausurada num convento.
Ela sabia, portanto, quando devia ficar em pé e quando devia ajoelhar-se,
quando devia balbuciar com os outros o padre-nosso e a ave-maria, sempre que
algum dos bispos, lá na frente, indicava e quando as pessoas deviam fazer as suas próprias orações. Todas as vezes que ela fazia as suas orações silenciosamente, pedia pela sua vida. Deus
dera-lhe um filho, três anos antes. E ela demorara dois dias para dar à luz esse
filho. Por duas vezes o Sol
nasceu e se pôs, enquanto ela ficava banhada em suor, em angústia e em dores.
Foi então que soube que iria morrer, e todas as boas mulheres que a ajudaram,
no final, também sabiam que isso iria acontecer. Foram elas que mandaram chamar
o padre lá em Forshem, e foi ele que lhe deu a absolvição por todos os pecados
e a extrema-unção. Nunca mais, esperava ela. Nunca mais aquela dor, nunca mais aquele
pânico da morte, pediu ela na sua oração». In Jan Guillou, A Caminho de Jerusalém,
As Cruzadas, Editora Bertrand Brasil, Grupo Editorial Record, 2002, ISBN
978-852-860-896-0.
Cortesia de EBertrandB/JDACT