13
de Julho de 1793
«(…)
Lavou-se, vestiu-se e olhou por fim para o relógio. Não se apercebera de que
era tão tarde, eventualmente teria dormido até ao meio-dia. Depois de sentir
culpa, amenizou, ser velho tem destas vantagens… Quando chegou à biblioteca não
encontrou uma pessoa com a explicação, mas um simples envelope e um bilhete no
qual se lia que estivesse a bordo do navio atracado junto à Torre de Belém às dezasseis
horas para conferenciar com o arrais e tratar com ele sobre certas
recomendações que o ministro de Estado lhe mandara.
Acolheu a notícia com fastio,
acabava de ver alterados os planos para essa tarde: uma tradução que tanto o
entusiasmava. Perdia-se naqueles manuscritos como em lianas no meio da floresta
encantada do conhecimento. As horas passavam e ele cada vez mais rico, mais
preenchido pelo gozo da investigação. Já não tinha tempo a perder, deveria sair
imediatamente. Do Largo de Jesus, subiu até à Basílica da Estrela e daí tomou a
direcção do rio. Andar fazia-lhe bem, mas arrependeu-se de não ter pedido
transporte. Por sorte, o coche enviado para o levar, e por distracção não
tomara à porta do convento, cruzava em velocidade as ruas de Lisboa, num vaivém
a ver se o encontrava. Deus seja louvado!, agradeceu, subindo. Então o senhor
padre vai em missão de Estado e acha que o deixavam a pé?, perguntou-lhe o
cocheiro. Os cavalos largaram o trote e pouco depois já avistavam o cais. Duas
naus destoavam no cenário. Naquela zona normalmente ninguém fundeava. Com
aquela primeira imagem futurou um molho de problemas. Homens negros,
corpulentos, havia algumas horas que transportavam possantes caixas de madeira.
Água e mantimentos de sobra em socorro das suas sedes para uns poucos dias,
assim se julgava.
Tomou uma barcaça que ali se
encontrava disponível. Alçou-se para o barco e assim que o pisou foi criticado
por rangidos, como se fosse malvindo. Inspirou, recolhendo as forças, e
lembrou-se que a humildade é uma arma. Foi encaminhado por um guarda em tudo
semelhante a um eunuco para uma salinha forrada de veludo verde-garrafa, mas onde
as cadeiras tinham umas pernas mais curtas do que outras e, desalinhadas,
mancavam. Enquanto aguardava, não se sentiu seguro sentado, não se sentiu
confortável de pé. Como se o observassem. Esperou mais tempo do que, segundo as
regras da boa educação, seria de prever, até que o arrais chegou à sala,
entrando imediatamente no assunto que o movia e o porquê de haver pedido um intérprete.
Tenciono chegar à fala de novo com o vosso ministro.
Pois bem, e que assunto deve ser
anunciado? É conveniente falar-lhe a fim de lhe comunicar certos negócios da
parte da princesa minha senhora, e pedir-lhe juntamente licença para ir a Queluz
entregar uma carta que a mesma princesa escreveu à rainha vossa senhora, e
entregar também certos documentos nas mãos do príncipe vosso senhor. Será com
prazer que o noticiarei. Sim, compreendia, mas na verdade o ministro estava
demasiado ocupado para dar atenção àquele caso. O arrais era um homem alto,
delgado, sem um delinear que o fizesse parecer clemente, ossos espetados a
aguentar aqueles trajes que trazia e se faziam sobressair, ambos largos, os
trajes e os ossos. O seu nariz pronunciado dividia-lhe a cara em duas metades
de maçã desiguais. Destapava a voz como se fosse uma panela, pressionada.
Terei todo o prazer em transmitir
as suas intenções. Dependendo da disponibilidade do ministro, agendaremos o
vosso encontro o mais cedo possível. Quero ir ao seu encontro, seguramente será
mais rápido assim. Com uma vénia discreta, sem aguardar reacção, retirou-se da
saleta, e ficou frei João espantado com aquela arrogância típica dos que na
aflição, com vergonha de gritar socorro, se não deixam afogar agarrando nos
cabelos de quem encontram pela frente, afogando-os se preciso for. Abandonou o
barco aliviado por já poder voltar à sua vida. Não se baixou na porta da
saleta, pois não teria mais de metro e meio, mas teve de a atravessar de 1ado,
a estreiteza desta não permitia à sua estendida barriga passar livremente.
Aqueles dois homens eram, a nível físico, o contrário um do outro». In
Raquel Ochoa, As noivas do Sultão, 2015, Edições Parsifal, 2015, ISBN
978-989-876-008-1.
Cortesia de EParsifal/JDACT