sexta-feira, 6 de julho de 2018

Destroços. Eduardo Lourenço. «Por demais habituados ao que sem o sabermos é a marca da fábrica da modernidade escapa-nos o alcance fantástico, revolucionário, da ironia como tom natural da Cultura»

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O Gibão de Mestre Gil
«(…) Fica-nos Erasmo a quem, com imperativa decisão alguns acusaram de ter chocado o famigerado ovo de onde Lutero saiu. Erasmo e o erasmismo são temíveis fenómenos culturais para poderem ser abordados sem uma série de cautelas dignas do mesmo Erasmo. Entre outras cautelas, quando se fala de Erasmo, convém distinguir duas coisas: uma, a sua crítica de costumes, que revela da teologia moral; outra, a sua crítica explícita e a mais das vezes implícita, de matéria teológica propriamente dita. Envolvendo estas duas vertentes do seu labor crítico (deixamos de lado a critica filológica que é a ferramenta erasmiana propriamente dita), há a considerar a forma que Erasmo dava à sua crítica. Este último ponto é de importância capital, como é sempre capital a forma sobre a qual tudo se manifesta, ao contrário do que é costume supor-se. A novidade de Erasmo, se exceptuarmos o contributo que hoje chamaríamos científico, isto é, os seus trabalhos de exegese, reside justamente na forma. Isto, supremamente, o distingue dos humanistas que o precedem ou são seus contemporâneos, e dá à sua acção um carácter revolucionário que ultrapassa de longe a letra dos textos que a Europa tem sob os olhos, a inquietam, a divertem, a escandalizam e a interessam.
Antes de Erasmo já começava a tornar-se manifesto que a Cultura não era apanágio da que, além do carisma religioso, era uma classe, a classe eclesiástica. Mas foi em Erasmo e através dele que isso se tornou visível, palpável, irrefutável e sem remédio. Justamente Erasmo soube, como o saberão Lutero no seu domínio, ou um Descartes e um Voltaire mais tarde, encontrar o tom, digamos, o lamiré, que permite pôr fora de moda uma mentalidade, um hábito secular, uma tradição, mesmo veneráveis. É um fenómeno que tem muitas semelhanças com o do aparecimento de uma moda, mas precisamente uma moda é assunto sério. Erasmo representa sob o plano da cultura, especialmente das humanidades, o aparecimento do clerc franc tireur, a liberdade de opinar em tais matérias paralela da liberdade de comerciar sem o cerceamento e a limitação próprias da época feudal. Como a burguesia nascente soube encontrar as vestiduras convenientes para revestir e exaltar uma nobreza de novo género, Erasmo encontrou o inimitável tom livre, desenvolto, superior porque seguro, que por si só reenviava todo um estilo mental, que era um modo de existir, para o sempre desagradável e em parte injusto rol dos esquecidos e caricatos.
Como se só esperassem esse sinal, essa música nova, de toda a parte, mas sobretudo daquelas zonas em que já se sentia também a anquilose e o cansaço da tradicional cultura, surgiu o entusiasmo, a adesão, numa palavra o erasmismo que permitia aos possuidores de técnicas novas sentir-se uma família. A análise exaustiva dessa forma que é a invenção, a marca do génio próprio de Erasmo não cabe no nosso propósito. Para ele basta, entre outros caracteres, assinalar o que se chama, talvez sem as cautelas devidas, a ironia de Erasmo. Por demais habituados ao que sem o sabermos é a marca da fábrica da modernidade escapa-nos o alcance fantástico, revolucionário, da ironia como tom natural da Cultura». In Eduardo Lourenço, Destroços, O Gibão de Mestre Gil e Outros Ensaios, Gradiva, Publicações, 2004, ISBN 972-662-945-4.

Cortesia de GradivaP/JDACT