«(…) Piankhi ergueu os olhos e viu um rapaz encostado à parede,
com as mãos agarradas a uma saliência e os pés apoiados num pedaço de rocha
friável. Para avançar mais depressa, o rapaz não tinha seguido pelo caminho
formado por escadas e cordas, julgando-se capaz de escalar (Uraeus, representação
da naja, símbolo, para os egípcios, da divindade e da realeza, bem como das divisões
do céu, Oriente e Ocidente) a parede com as mãos nuas. Quando vira o escultor
cair, fora invadido pelo pânico. Impotentes, com os braços caídos, os seus
camaradas esperavam o desenlace fatal. Que idade tem esse rapaz? perguntou
Piankhi. Dezassete anos. Quanto pesa? Não sei exactamente confessou Cabeça-fria
mas é um magricela. Escolhe dois homens para me acompanharem. Majestade, não
ides... Por cima dele as paredes aproximam-se. Se conseguir arranjar uma
posição estável e agarrar-lhe a mão, tem uma hipótese de sobreviver. Cabeça-fria
tremia.
Majestade, em nome do reino, suplico-vos que não correis
semelhante risco! Considero-me responsável pela vida desse rapaz. Vamos, não há
um segundo a perder. Dois talhadores de pedra de ombros fortes e pés seguros
precederam Piankhi subindo a escada estreita que conduzia à primeira
plataforma, formada por sólidas vigas de madeira de acácia. Aguenta-te disse
Piankhi com uma voz forte que ressoou por toda a Montanha sagrada. Já aí vamos!
O pé esquerdo do assistente de escultor deslizou e ficou por instantes suspenso
no vácuo. Com um esforço de que já não se julgava capaz, o rapaz reencontrou o
equilíbrio e conseguiu encostar-se de novo à parede. Tenho que subir mais
considerou o rei. Deveis utilizar esta corda com nós, Majestade disse um dos
talhadores de pedra. Piankhi trepou sem dificuldade e imobilizou-se numa saliência,
por cima do infeliz cujos dedos começavam a ficar roxos à força de se agarrar
ao rochedo. O monarca estendeu o braço direito, mas faltava-lhe ainda cerca de
um metro para atingir aquele que pretendia salvar de uma morte horrível. Uma
escada!, exigiu o monarca.
Os dois talhadores de pedra ergueram uma. Era tão pesada
que todos os seus músculos se contraíram. Isso significava que aquilo que
Piankhi tencionava fazer exigiria uma força hercúlea: colocar a escada em
posição horizontal e encaixá-la entre as duas paredes. Lentamente, com uma
concentração extrema, os dedos crispados no degrau central, o rei fê-la girar.
Quando uma das extremidades tocou na rocha, soltaram-se alguns fragmentos que
passaram a rasar a cabeça do rapaz, o qual soltou um grito abafado. Aguenta-te,
rapaz! A escada estava encaixada. Piankhi avançou pela passarela improvisada; a
madeira gemeu. Um dos degraus teve um rangido sinistro, mas suportou o peso do
atleta negro. Com agilidade, este estendeu-se sobre a escada.
Estou muito perto de ti, meu rapaz. Vou estender o braço, tu vais
agarrar o meu pulso e vou içar-te para esta escada. Não..., não
aguento mais! Tens de voltar-te
para veres o meu braço. É
impossível... Impossível! Respira
calmamente, concentrando-te na respiração, apenas na respiração, e gira sobre
ti mesmo. Vou esmagar-me no chão, vou
morrer! Principalmente, não olhes para
baixo mas apenas para cima, para o meu braço estendido! Está mesmo por cima da tua cabeça.
A escada gemeu de novo. Gira
sobre ti mesmo e volta-te!,
ordenou Piankhi em tom imperioso. Tetanizado,
sem respiração, o assistente do escultor obedeceu. Desajeitados e incertos, os
pés deslizaram contra sua vontade. No
instante em que ia encontrar-se face ao vácuo, o jovem escorregou. De olhos esbugalhados, oscilou no abismo. Estendendo-se até quase
deslocar o ombro, Piankhi conseguiu
agarrar o pulso esquerdo do rapaz. O
choque foi violento, mas o rei conseguiu içá-lo para a escada. Majestade..., murmurou ele com dificuldade, desfazendo-se
em lágrimas. Se fosses mais
pesado, meu filho, estaríamos os dois mortos. Condeno-te a trabalhar um mês com
as lavadeiras por teres violado as regras de segurança. Na base do pico, os camaradas do rapaz que acabara de ser salvo
felicitaram-no, depois de terem aclamado o rei.
Cabeça-fria continuava a parecer pouco satisfeito. O rapaz está vivo, não é o essencial? Não vos disse tudo, Majestade. O
que há mais? Devo confirmar-vos os
meus receios; alguns membros da vossa corte, e não dos menos importantes, põem
em causa a vossa legitimidade». In Christian Jacq, O Faraó Negro, 1997, Bertrand
Editora, 1998, ISBN 978-972-251-049-3.
Cortesia de BertrandE/JDACT