A
descoberta do manuscrito de Berequias Zarco
«(…)
Uma mágoa contida recobria o aparo da pena com que
escrevia quando iniciei a narração da nossa história. Estávamos no ano hebraico
de 5267, 1507 da era cristã. Egoisticamente, abandonei o manuscrito, por Deus
não me ter recompensado com a tranquilidade da alma. Hoje, passados que são
vinte e três anos desta magra tentativa de registar a minha busca de vingança,
voltei a afagar as páginas abertas do pergaminho. O que me terá levado a romper
a jura de silêncio? Ontem, por volta do meio-dia, bateram à porta, aqui, na
nossa casa de Constantinopla. Mais ninguém da família se encontrava em casa e
fui ver quem era. À entrada perfilava-se um jovem de pequena estatura, cabelo
escuro comprido, olhos cansados, envolvido numa bela capa ibérica às riscas
verdes e escarlates. Num tom hesitante, entrecortado, perguntou em português: acaso
tenho a honra de falar com mestre Berequias Zarco? Assim é, meu rapaz, respondi.
E tu poderás dizer-me com quem falo? Curvando-se numa vénia, respondeu: Lourenço
Paiva. Cheguei agora mesmo de Lisboa e vinha com a esperança de vos encontrar.
Murmurando aquele nome para mim próprio, recordei-me ser
ele o filho mais novo de uma velha amiga cristã, a lavadeira a quem tínhamos
deixado a nossa casa em Lisboa, momentos antes de fugirmos daquela cidade
tenebrosa há mais de duas décadas. Interrompi com um aceno a desnecessária
apresentação que ainda desfiava e fi-lo entrar na nossa cozinha. Sentámo-nos
nos bancos junto à janela que dava para uma roda de arbustos de alfazema e de
murta no jardim. Quando perguntei pela mãe dele, entristeceu-me saber que tinha
sido há pouco chamada por Deus. Numa voz melancólica mas orgulhosa ficou uns
momentos a gabar-lhe as qualidades. Depois, partilhámos deliciados uma
garrafita de vinho da Anatólia, enquanto me contava a sua viagem por mar desde Portugal e as suas primeiras e
pasmadas impressões da capital turca. Mas a minha despreocupação havia de me
deixar desprevenido para o que se seguiu: quando lhe perguntei a que devia o
prazer da sua visita sacou da sua capa duas chaves de ferro pendentes de uma
corrente de prata. Instantaneamente, percorreu-me um estremecimento de temor.
Antes que eu pudesse falar, exibindo o radioso sorriso de um jovem oferecendo
um presente a alguém mais velho, depositou as chaves nas minhas mãos e disse: se
quiser voltar, mestre Berequias, tem à sua espera a sua casa de Lisboa.
Agarrei-lhe o braço para me segurar; o meu coração batia ao ritmo
desta única palavra: lar. Sentia os dentes das chaves a morder-me o punho em que as tinha
envolvido, abri a mão e inclinei-me para aspirar o cheiro a moeda antiga do
metal. Memórias de ruas labirínticas e de olivais varriam-me de cima a baixo.
Eriçavam-se-me os pêlos do pescoço e dos braços. Uma porta interior abria-se
dentro de mim, dando acesso a uma visão: estava em pé do lado de fora da
cancela de ferro que dava para o quintal nas traseiras da nossa velha casa
de Alfama. Emoldurado pelo arco da cancela e erguendo-se no meio do quintal
estava o meu tio Abraão, o meu mestre espiritual. Envolvido na sua túnica de
viagem de lã inglesa de uma cor vermelho-viva, colhia limões do nosso limoeiro,
cantarolando baixinho com um ar feliz. A sua pele morena, cor de canela,
brilhava como ouro, como se a iluminasse a luz que precede o pôr do sol, e a mecha
rebelde do seu cabelo de prata e os tufos das sobrancelhas cintilavam como por
um poder mágico. Pressentindo a minha presença, suspendeu a melodia, voltou-se
com um sorriso de boas-vindas e caminhou em minha direcção com o passo
balanceado que normalmente só adoptava na sinagoga. Os seus olhos verdes
calorosos, bem abertos, pareciam envolver-me. Com um trejeito divertido nos
lábios, sem deixar de caminhar, começou a desapertar a faixa que rodeava a
túnica, deixando a roupa cair sobre as lajes de ardósia que pavimentavam o
quintal. Estava completamente nu, só com um xaile ritual a cobrir-lhe os
ombros. Enquanto se aproximava de mim, o seu corpo começou a irradiar feixes de
luz. O seu vulto tornou-se tão brilhante que os meus olhos se cobriram de lágrimas». In Richard Zimler, O Último Cabalista de Lisboa,
1996, Quetzal Editores, Lisboa, ISBN 978-972-004-491-4.
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