«(…) Despejou água fervente sobre as folhas de urtiga num
círculo lento e perfeito, e aquela precisão me encantou. Voltei a me sentar. Desculpe a minha curiosidade,
Erik, mas por que voltou para nós?, perguntou. Não sei bem. Mas qualquer
resposta que lhe desse não faria muito sentido, a menos que lhe contasse o que
me aconteceu no gueto; e, acima de tudo, teria de lhe falar do meu sobrinho. E
então, o que o impede? Podemos passar o dia inteiro juntos, se quiser. Surgiu-lhe
um brilho maroto nos olhos. Apesar do desgosto e da solidão, Heniek parecia
ansioso por uma nova aventura. Conto-lhe daqui a pouco, respondi. O facto de
ter conseguido falar com você…, deixou-me debilitado. Heniek fez que sim com a
cabeça, compreensivo. Depois de beber o seu chá, sugeriu que fôssemos dar um
passeio. Levou um saco de batatas para a irmã, que dividia com mais seis inquilinos
um apartamento de dois cómodos perto da Grande Sinagoga, e a seguir fomos ouvir
Noel Anbaum cantar à porta do teatro Nowy Azazel. O seu acordeão fez dançar
diante dos meus olhos um enxame de borboletas rubras e douradas, uma sensação
estranha e magnífica, mas a que me tenho acostumado
ultimamente; os meus sentidos agora fluem muitas vezes juntos, como as tintas
de um vitral a transbordar dos seus contornos. Será que, no fim, acabarão por
se fundir completamente? Cairei dentro de uma paisagem excessivamente rica em
sons, visões e toques, e sentir-me-ei incapaz de fazer às cegas o caminho de
regresso a mim próprio? Talvez seja dessa maneira que a morte vai finalmente se
apoderar de mim.
Heniek, enquanto ouço o zumbido paciente do candeeiro
de petróleo pousado entre nós e observo a dança trémula da sua chama azul, a
gratidão que me invade, me abraça, como fez Adam quando lhe disse que havíamos
de visitar Nova York juntos. E o contentamento que sinto por ter conseguido
falar e sussurra ao ouvido: apesar de todas as tentativas dos alemães para refazer o mundo, as leis
naturais continuam a existir. Por isso, tenho de lhe contar a
minha história pela ordem certa, senão ainda me vou sentir tão perdido quanto
Hansel e Gretel. E, ao contrário dessas crianças cristãs, não tenho migalhas de
pão para marcar o meu caminho de regresso a casa. Porque não tenho casa. Foi isso que me
ensinou o caminho de volta à cidade em que nasci. Primeiro vamos falar de como
Adam desapareceu, e como voltou para nós sob forma diferente. E depois vou
contar-lhe como Stefa me fez acreditar em milagres.
No
último sábado de Setembro de 1940, aluguei
uma carroça puxada por um cavalo, o respectivo cocheiro e dois homens pagos à
diária para fazerem a mudança do meu apartamento junto ao rio para o de um
quarto da minha sobrinha, situado no velho bairro judeu da cidade. Decidira
sair de casa antes da criação oficial de um gueto, porque já nos fora proibido
circular em grande parte de Varsóvia, e não precisava de uma bola de cristal
para saber o que viria a seguir. Queria ser eu a estabelecer as condições do
meu exílio, e poder escolher quem iria para o meu apartamento. Já se tinham mudado
para lá a filha de um cristão vizinho meu, estudante universitária, e o marido
dela, advogado. Com o meu melhor casaco de lã, pus-me a andar literalmente
atrás da carroça, certificando-me de que nada escorregava para o chão
lamacento. Meu velho amigo Izzy Nowak juntou-se a mim, na esperança de escapar
por algum tempo da atmosfera deprimente da sua casa; a mulher dele, Róza,
sofrera uma trombose cerebral no início do mês e já não o reconhecia mais. A
irmã mais nova de Róza mudara-se havia pouco tempo para lá, a fim de ajudar a
cuidar dela». In Richard Zimler, Os Anagramas de Varsóvia,
2009, Editora Record, 2010, isbn 978-850-109-966-2, Porto Editora, Porto, 2015,
ISBN 978-972-004-728-1.
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