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O
começo da lenda
Califórnia.
1790-1810
«(…) Uns dias mais tarde, o capitão Alejandro La Vega chegou a
galope à missão. Desmontou de um salto no pátio, desfez-se da pesada casaca do
uniforme, do lenço e do chapéu, e mergulhou a cabeça na artesa onde as mulheres
enxaguavam a roupa. O cavalo estava coberto de suor espumoso, porque tinha
carregado por várias léguas o cavaleiro com o seu equipamento de dragão do
Exército espanhol: lança, espada, escudo de couro duplo e carabina, além dos
arreios. De La Vega era acompanhado por um par de homens e vários cavalos que
transportavam as provisões. O padre Mendoza saiu a recebê-lo com os braços
abertos, mas, ao ver que só o acompanhavam
dois soldados andrajosos e tão extenuados como as cavalgaduras, não pôde
dissimular a frustração. Lamento, padre, não disponho de mais soldados do que
este par de bravos homens. O resto do destacamento ficou na povoação de La
Reina de los Angeles, que também está ameaçada pela sublevação, desculpou-se o
capitão, limpando a cara com as mangas da camisa. Que Deus nos ajude, visto que
Espanha o não faz, retrucou entre dentes o sacerdote. Sabe quantos índios
atacarão? Há muito poucos aqui que saibam contar com rigor, capitão, mas,
segundo os meus homens averiguaram, podem chegar a quinhentos.
Isso significa que não serão mais de cento e cinquenta,
padre. Podemos defender-nos. Com que contamos?, inquiriu Alejandro La Vega. Comigo,
que fui soldado antes de ser padre, e com outros dois missionários, que são
jovens e corajosos. Temos três soldados adstritos à missão, que vivem cá.
Também vários mosquetes e carabinas, munições, um par de sabres e a pólvora que utilizamos na pedreira. Quantos
neófitos? Sejamos realistas, meu filho: a maioria não combaterá contra gente da
sua raça, explicou o missionário. Quando muito, conto com meia dúzia de jovens
criados aqui e algumas mulheres que nos podem ajudar a carregar as armas. Não
posso arriscar as vidas dos meus neófitos; são como crianças, capitão. Trato
deles como se fossem meus filhos. Bem, padre, mãos à obra, em nome de Deus.
Pelo que vejo, a igreja é o edifício mais sólido da missão. Defender-nos-emos
lá, disse o capitão. Durante os dias seguintes ninguém descansou em San
Gabriel; até as crianças de tenra idade foram postas a trabalhar. O padre
Mendoza, bom conhecedor da alma humana, não podia confiar na lealdade dos
neófitos uma vez que se vissem rodeados de índios livres. Consternado, notou um
certo brilho selvagem nos olhos de alguns deles e a falta de vontade com que
cumpriam as suas ordens: deixavam cair as pedras, rasgavam-se-lhes os sacos de
areia, enredavam-se nas cordas, entornavam-se-lhes os baldes de pez. Forçado
pelas circunstâncias, violou o seu próprio regulamento
de compaixão e, sem que lhe tremesse a vontade, condenou um par de índios ao
cepo e a um terceiro aplicou dez chicotadas, para servir de exemplo. Depois
mandou reforçar com tábuas a porta do dormitório das mulheres solteiras,
construído como uma prisão, de modo que as mais audazes não saíssem para
passear ao luar com os respectivos apaixonados. Era um edifício rotundo, de
grosso adobe, sem janelas e com a vantagem adicional de se poder trancar por fora
com uma barra de ferro e cadeados.
Ali encerraram a maior parte dos neófitos do sexo
masculino, agrilhoados pelos tornozelos, a fim de evitar que na hora da batalha
colaborassem com o inimigo. Os índios têm medo de nós, padre Mendoza. Julgam
que possuímos uma magia muito poderosa, afirmou o capitão La Vega, dando uma
palmada na coronha da sua carabina. Esta gente conhece de sobra as armas de
fogo, embora ainda não tenha descoberto o seu funcionamento. O que na verdade
os índios temem é a cruz de Cristo, retorquiu o missionário, apontando para o
altar. Então vamos fazer-lhes uma demonstração do poder da cruz e do da pólvora,
riu-se o capitão, passando a explicar o seu plano». In Isabel Allende, Zorro, O Começo
da Lenda, Editorial Inapa, 2010, ISBN 978-989-681-006-1.
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