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O
Medalhão de Ouro
«(…)
Rumo inesperado tomam todavia os acontecimentos. Com a aprendizagem do latim,
nós, os mais pequenos, começamos a ajudar à missa. Todos os dias calhava a vez
a um, enquanto os outros combinavam o fio puríssimo das suas vozes com os
cheios e graves dos mais idosos e adiantados, entoando em coro os hinos
litúrgicos. Corria o mês de Julho. Um fidalgo da mais alta nobreza, parente de
reis, mestre de Santiago e de Avis, que, além de possuir abastados senhorios no
Centro do país, era senhor de vastas terras que se estendiam desde Setúbal, onde
tinha seus paços, até ao termo de Évora, havia oferecido ao convento um missal
novo, obra ultimamente impressa, encadernado a couro, pregueado com broches de
prata, assim como de prata eram as suas cantoneiras. Os irmãos franciscanos, na
sua simplicidade, habituados a não terem mimos nem atavios, com pouco se
contentam, quanto mais com uma dádiva tão preciosa! Era gostoso de ver, até os
mais novos notávamos, a alegria com que o presbítero folheava aquelas páginas
ainda brancas, ornadas de finíssimas iluminuras coloridas, e lia aqueles
caracteres nítidos que cheiravam a tinta fresca e o prazer que também nós, os
pequenos ajudantes, sentíamos em pegar nele quando se apresentava a ocasião de
haver de mudá-lo do lado da epístola para o do evangelho ou vice-versa. Quanto
a mim sentia profunda emoção em ajudar à missa. Estar ali tão perto daquilo que
para mim era redobrado mistério!... Mistério
era palavra que ouvia todos os dias, na catequese e que muito fundamente
me tocava. Não havia também em mim, à minha volta, escuro mistério? O
insondável marcou-me pela vida fora, porque depois, desde bem cedo, e com o
avançar da idade, aprendi que a religião vive do mistério e que a revelação tem
de ser sempre meia revelação. Eu ouvira falar, ou lera algures, dos mistérios
de Elétisis, no vasto templo rodeado de ciparissos da deusa Deméter, divindade
que representava o volver cíclico das estações do ano. Sabia das iniciações
esotéricas da seita pitagórica e dos segredos dos rituais órficos e do inefável
simbolismo de Isis, nas margens do Nilo onde, por entre os papiros e as flores
de lótus, passeia a suave íbis e esvoaça o falcão e rasteja a cobra-capelo, à
luz ardente do sol do deserto, em frente das grandes pirâmides. Lera o livro de
Marco Polo que narra os costumes estranhos e as crenças esquisitas dos povos
que habitam na grande China. Pessoas que a todo o momento acudiam das índias
Orientais contavam os mais inauditos factos relacionados com a fé daquelas
nações. Tudo era mistérios, segredos bem guardados. A mais leve indiscrição
podia pagar-se com a vida.
Recentemente tenho confirmado
este meu sentimento e opinião, com os muitos contactos e conversação havidos
com tantas e desvairadas gentes de outras religiões, sobretudo judeus
portugueses de cá fugidos e espalhados por terras do Mediterrâneo. A fé
hebraica sustenta-se na crença de que o Messias está a chegar. Ele chegou e não o reconheceram nem o
aceitaram. Era lógico: perderiam a sua crença nos antigos mistérios, tal o vigor
das novidades que Ele veio trazer. Muitos dos meus irmãos franciscanos, quando
me ouvem falar assim, dizem que tenho ideias muito ousadas, mas eles bem sabem
que elas não passam da verificação de um facto que nada tem a ver com o meu
repúdio das ideias e falsos deuses dos pagãos. Vem a colação apenas para
notificar que desde muito novo me habituei a sentir como coisa palpável o
mistério que impregna e é sustentáculo da religião...
Naquele tempo, pois, ao
aproximar-me do altar sentia na pele o mistério que dele se evolava, que ele
exalava das formas, dos símbolos, das figuras hieráticas dos Ícones, da talha
dourada do retábulo, do baldaquino, da porta do sacrário, do ruído da chave na porta
do sacrário, do ouro e lavrado das alfaias do culto, do bordado dos paramentos,
do linho alvíssimo das toalhas, do cheiro a cera e a incenso. Realçavam-no o
silêncio e a meia obscuridade do templo ou a luz coada por vitrais, o andar
vagaroso e concentrado das pessoas, o ciciar das vozes... Sempre que chegava a
minha vez de ajudar à missa, fazia-o com uma solene religiosidade, não isenta
de certa emoção, o que um dia me levou a quase me desequilibrar a meio dos
degraus do altar. Tropecei. O missal, aberto, oscilou na sua estante, algumas
laudas abriram-se com o deslocamento de ar que entre elas se insinuara por
momentos e uma pequena tira de papel, que talvez estivesse a marcar uma página,
soltou-se então, e librando e ondeando foi cair no chão. Recuperado rapidamente
o equilíbrio, coloquei o missal sobre o altar, no lado esquerdo, e vim ocupar o
meu posto, de pé, enquanto o ministro lia o Evangelho. De novo de joelhos, ao
Credo, reparo no papel caído num degrau, ali a meu lado. Apanhei-o, naquele
gesto quase automático de quem foi habituado à mais escrupulosa limpeza, a não
lançar papéis no chão, e como a continuação do ofício divino exigisse a minha
atenção, seguia-se o Ofertório e era preciso apresentar as galhetas ao
celebrante, guardei-o num bolso por baixo da sobrepeliz. Após a missa, que era
muito cedo, a hora de prima, dirigimo-nos, como sempre, em fila, os mais novos
à frente, seguidos dos outros em gradação de estudos e de hierarquia, no mais
rigoroso silêncio, ao refeitório». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel,
Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.
Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT