Cambridge, Inglaterra
«(…) Segundo no comando dos
tradutores, ele ocupava uma posição mais de secretário que de qualquer outra
coisa. Diante de tal cena, ele parecia mais fascinado do que revoltado. Seu
casaco simples, cor de folha morta, parecia ter sido lavado com tanto vigor que
talvez até tivesse sentido dor. Apontou a complicada cruz de espinheira no
pescoço do morto. Creio que aquela seja a cruz de Harrison, sussurrou Marbury. E
aquele, com a máxima certeza, é o colete de Harrison, continuou Spaulding, frio
como uma pedra. Não havia dúvida sobre quem era o morto. O ministro protestante
apoiou-se na escrivaninha e concentrou-se na respiração. Observou em silêncio
os outros concordarem entre si sobre os detalhes das conclusões que haviam
tirado. Como foi, começou Marbury a perguntar devagar a Lively, que o senhor encontrou
este horror a esta hora da noite? O meu entusiasmo atraiu-me até aqui,
apressou-se a responder o outro. Estava ávido para trabalhar em minhas novas
páginas... Elas exercem tamanha atracção sobre mim que o senhor nem pode
imaginar. É, mas o que não preciso imaginar, declarou o pastor com cuidado, é a
raiva que Harrison teria demonstrado se soubesse que o senhor andava olhando o trabalho.
O sujeito era dado a ataques de fúria. Todos sabemos disso. Talvez estivesse
aqui, os senhores tivessem discutido, ele o tenha atacado... Lively foi
interrompido antes de começar a responder. Precisamos avisar o vigia nocturno
imediatamente, exigiu Spaulding. O senhor é um homem de letras, Spaulding, e
não saberia como proceder em assuntos deste tipo, respondeu Marbury, mal
escondendo o tom de zombaria, e nossos policiais aqui em Cambridge são todos,
até ao último, bastante inúteis.
Permita-me cuidar deste caso de
outro jeito. Revoltante, guinchou o outro. Não devemos deixar que isso
aconteça... Eu já pensei num método para investigar este horror, respondeu o
pastor num tom tranquilizante, quase hipnótico. Mas... Marbury voltou-se logo
para o grupo e ergueu a mão. Com o seu perdão, cavalheiros, eu sugiro que
avaliemos tudo por um instante antes de falarmos mais. Primeiramente, o nosso
dever cristão obriga-nos a oferecer, cada um de nós, uma prece em silêncio pelo
nosso colega Harrison. Viu cada rosto vivo registar o seu próprio tipo de
religiosidade instantânea. Olhos fecharam-se, bocas mexeram-se; vozes
sussurraram. Ele usou o momento de silêncio para dar outra olhada no cadáver e
tentou examiná-lo com mais atenção. O sangue no corpo não secara, mas não
escorria. Quase não havia mancha no chão, na escrivaninha ou na cadeira próxima
do morto.
O colete mostrava vários lugares
rasgados, dois encharcados de sangue, mas era um sangue viscoso, não estava
vazando, nem seco. Poderia Harrison haver sido morto noutro lugar e depois trazido
para o salão? Após um momento, obrigou-se a tornar a olhar a devastação que era
o rosto. Rezou, então, para que o amigo já estivesse morto antes de ser
mutilado. Mas, ao terminar a prece, notou mais alguma coisa. Agora, então,
quebrou o silêncio no tom controlado de um homem de negócios, peço aos senhores
que não falem do incidente. Não o discutamos com ninguém fora destas paredes
enquanto não soubermos o que aconteceu. O trabalho dos senhores é demasiado
sagrado, demasiado vital, para ser destruído por este acontecimento. Talvez as minhas
palavras pareçam frias, mas creio que expressem o interesse maior da nossa
erudição e de nosso rei. Afinal, este salão é um lugar de aprendizagem ou um
matadouro?
O académico mais velho do grupo pigarreou
com barulho. Era o Lawrence Chaderton, um estudioso de hebraico, em termos
amistosos, com muitos dos notáveis rabinos da Inglaterra. Irradiava a profunda
calma de um homem com total confiança sobre o lugar que ocupava neste mundo, e
no próximo. Tinha o casaco simples e negro, abotoado, quase chegando ao
pescoço. Cabeça descoberta, os cabelos brancos emitiam raios e faíscas. O homem
que fez isso a Harrison não é, na minha definição, um ser humano. O velho estreitou
os olhos. Devemos seguir em frente com incrível delicadeza. Sugere o nosso
colega mais velho, interveio Spaulding, com um sorriso de zombaria e formando
as palavras com a boca, que isso pode ser obra do demónio? Os demónios de facto podem entrar num homem, entoou
Chaderton, olhos de aço com a voz de Deus. Fazem uma mão humana realizar actos
desumanos. E podemos ter a certeza de que o próprio demónio se opõe ao nosso
trabalho aqui neste salão. Sem dúvida mandou sequazes para desviar-nos, ou, ouso
dizer, destruir-nos.
Vários dos homens no grupo
recomeçaram a rezar. Um benzeu-se. Agora, se me dão permissão, disse Marbury
devagar, abrindo caminho em direcção ao corpo, vejo que o irmão Harrison tem
alguma coisa na boca. Todos os olhos voltaram-se para o morto, cabeças
curvadas; o círculo ficou menor. Perdão, continuou o pastor, curvando-se perto
do cadáver e fazendo a mão pairar a centímetros da boca. Não toque nele!,
sussurrou Lively, sugando a respiração como se houvesse recebido um soco no
estômago. Que ar dramático..., pensou Marbury. Ainda assim... Lançou a mão sem
aviso, rápida e num movimento do qual só se notou um borrão, e pegou um pedaço
de papel amassado e húmido na boca do morto. Todos arquejaram. Mais homens se
benzeram. Com delicadeza e usando o polegar e o dedo médio, ele desamassou o
papel e levou-o para mais perto da vela. Havia palavras escritas, como todos
viam. Que é que diz?, sussurrou Lively, quase sem emitir som algum. Vagando
pelo mundo como carrascos de Deus.
Marbury
pôs o pedaço de papel rasgado na escrivaninha de Harrison. Os homens amontoaram-se
em volta. Ofereceram velas para iluminar o trabalho. Todos leram a nota. As
palavras parecem de algum modo conhecidas, pensou o pastor consigo mesmo. É
claro que esta nota horrenda foi escrita pela mão do próprio Harrison. Lively
bateu com o fundo da vela na folha enrugada, húmida e rasgada. Eu concordo,
afirmou calmamente o ministro. Inventava na mente imagens do assassino forçando
a vítima a abrir a boca e a comer as suas próprias palavras. É uma mensagem?,
quis saber o outro. Uma advertência?, perguntou Spaulding. Isto é obra de demónios,
afirmou Chaderton. Tanto mais razão, interveio Marbury, com a voz um pouco mais
elevada que antes, parecendo um fino tecido de tolerância esticado sobre um
abismo de impaciência, para nos envolvermos num véu de silêncio». In
Phillip Depoy, A Conspiração do rei James, Prumo, 2009, ISBN 978-857-927-022-2.
Cortesi de Prumo/JDACT