«(…) Eh? Mas, então, e as horas?,
gritou Leo. Oh, deixa lá as horas! Há sempre alguém preocupado com as horas!,
exclamou Lucille. Bom, se não se importam com as horas a que vão chegar, pois
eu também não!, disse Leo, heroicamente. O cigano mantivera-se sentado na parte
lateral da carroça, descontraído, observando os rostos. Depois, saltou para o
chão, os joelhos um pouco entorpecidos. Era, aparentemente, um homem com mais
de trinta anos e, à sua maneira, um janota. Usava uma espécie de jaqueta de
caça, de peitorais duplos, que lhe chegava à cintura, feita de um tecido de lã
grosseiro, num tom verde-escuro, umas calças pretas bastante justas, botas
pretas e um boné verde-escuro e ao pescoço um grande lenço de seda amarelo e vermelho.
Tinha uma aparência curiosamente elegante e bastante dispendiosa, dentro do seu
estilo cigano. Era bonito, também, de queixo erguido, com a tradicional vaidade
cigana e, agora, aparentemente, sem já se importar com os estranhos, conduzia o
seu cavalo para fora da estrada, preparando-se para fazer recuar a carroça.
As raparigas viram, então, pela
primeira vez, uma profunda reentrância num dos lados da estrada e duas grandes
carroças a deitarem fumo. Yvette desceu rapidamente. Tinham de súbito chegado a
uma pedreira abandonada, cortada na falésia ao lado da estrada, e neste covil,
quase como uma espécie de gruta, encontravam-se três outras grandes carroças,
desarmadas, até passar o Inverno. Havia também, lá mais para o fundo, um abrigo
construído com ramagens, um estábulo para o cavalo. A rocha cinzenta e nua
erguia-se muito acima das carroças e curvava para fora, para o lado da estrada.
O pavimento era constituído por lajes, entre as quais cresciam ervas. Era um
acampamento de Inverno, confortável e quente. A mulher idosa, que carregava o
fardo, entrara numa das carroças e deixara a porta aberta. Duas crianças espreitavam,
exibindo as suas cabeças escuras. O cigano chamou alguém, enquanto fazia a
carroça recuar para dentro da pedreira, e surgiu um homem já velho, para o
ajudar a desatrelar o cavalo.
O cigano subiu os degraus da
carroça mais nova, a que tinha a porta fechada. Por debaixo da carroça estava
amarrado um cão, que correu para a frente até ao limite da corda. Era um cão
branco, malhado, de um tom castanho-amarelado. Rosnou surdamente, quando Leo e
Bob se aproximaram. Nesse mesmo instante, uma cigana de cara muito morena, com
um grande lenço cor-de-rosa em volta da cabeça e enormes brincos de ouro nas
orelhas, desceu os degraus da carroça mais nova, balançando a sua volumosa saia
verde, cheia de folhos. Era de certo modo bonita, com uma cara comprida, atrevida,
um pouco animalesca. Parecia-se com uma daquelas ciganas espanholas, atrevidas
e ondeantes. Bom dia, senhoras e cavalheiros, disse, mirando as raparigas com
os seus olhos ousados de ave de rapina. Falava com um certo sotaque
estrangeiro. Boa tarde!, responderam as raparigas. Qual das lindas meninas quer
ouvir a sua sina? Qual é que me dá a sua mãozinha?
Era
uma mulher alta, com uma assustadora maneira de esticar o pescoço para a
frente, como uma ameaça. Os seus olhos passavam de rosto para rosto, muito
activos, numa busca impiedosa daquilo que ela desejava. Entretanto, o homem, aparentemente
seu marido, surgiu no alto dos degraus da carroça, fumando um cachimbo e com
uma criança pequena, de cabelos pretos, nos braços. Ficou de pé, apoiado nas
suas pernas flexíveis, olhando distraidamente para baixo, para o grupo, como se
estivesse a vê-los à distância, as longas pestanas negras bem erguidas por cima
dos olhos negros, presunçosos e impudentes. Um olhar peculiar, que transmitia qualquer
coisa. Yvette sentiu-o, sentiu-o nos seus joelhos. Fingiu estar interessada no
cão branco e castanho. Quanto é que quer para nos ler a sina a todos?,
perguntou Lottie Framley, enquanto os seis jovens cristãos de frescas faces recuavam,
um pouco relutantemente, ante esta mulher paga e nómada. A todos? As senhoras e
os cavalheiros, todos?, perguntou a mulher, astutamente. Não quero que leiam a
minha! Façam-no vocês!, gritou Leo. Eu também não, disse Bob. As quatro
raparigas. As quatro senhoras?, perguntou a cigana, olhando-as perspicazmente,
depois de ter observado os rapazes». In DH Lawrence, A Virgem e o Cigano, 1926,
Editora Assírio & Alvim, 1984, colecção O Imaginário, ISBN
978-972-370-164-7.
Cortesia de Assírio
& Alvim/JDACT