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«(…) Era baixo e gordo,
atarracado como se tivesse sido comprimido mecanicamente. Nascera em Memel ou
Dantzig, ou numa outra cidade qualquer riscada do mapa pelas tropas de assalto
nazistas. Tivera muito nomes e passaportes, e no seu caminho, um longo caminho
cujo objectivo era a América, como refugiado fora obrigado a deter-se, fixando
por fim residência em Taiti, onde se dedicara ao comércio. Declarara ter sido arqueólogo
noutros tempos, ter acompanhado diversas expedições alemãs em dias mais felizes
e afizera-se ao modelo de Heinrich Schliemann, obstinado e excêntrico escavador
de Tróia. Easterday era demasiado mole e desmazelado, demasiado desejoso de
agradar e demasiado falto de sorte para representar o papel de Schliemann, pensara
então Maud. Alexander Easterday, sim. Conseguia agora vê-lo melhor: chapéu de
linho, ridiculamente empoleirado na cabeça; gravata borboleta (nos Mares do
Sul), casaco tropical cinzento, amarrotado, cujas calças o ventre saliente
alargara. E ainda pormenores mais curiosos: pince-nez alto num nariz longo,
três centímetros de bigode, bolsos deformados, cheios de ninharias, notas,
cartões de visita. Começava agora a recordar-se com mais nitidez.
Passara a tarde a bisbilhotar a
loja cheia de artefactos da Polinésia, todos a preços razoáveis, e adquirira um
par de castanholas de bambu balinesas, uma clava de guerra, esculpida, das ilhas
Marquesas, uma saia de tapa da Samoa, um capacho da ilha de Ellice e uma antiga
tigela de madeira de Tonga, a qual servia agora de adorno no aparador da sua
sala de estar. Antes de partirem, recordava, ela e Adley, pois quisera que
Adley o conhecesse, tinham convidado Easterday para uma refeição no restaurante
do terraço do Grande Hotel. O convidado mostrara-se uma enciclopédia no que
tocava a informações, iluminara alguns enigmas menores da sua estada de meio
ano na Melanésia. Isto passara-se há oito anos, quase nove, quando Marc estava
no seu último ano na Universidade (ao jovem desagradava a influência ali de
Alfred Krober apenas porque o pai e a mãe idolatravam o mestre).
Ao recordar agora os anos
passados, Maud lembrou-se de que o seu último contacto com Easterday se
verificara um ano ou dois após o seu encontro em Taiti. Nessa altura tinham
publicado um estudo sobre o povo de Bau, nas ilhas Fidji, e Adley
recomendara-lhe que enviasse a Easterday um exemplar autografado. Ela assim
fizera e passados alguns meses Easterday agradecera a dádiva numa breve carta
formal a que não era, porém, estranho um certo desvanecimento por tão augustos
conhecidos se terem lembrado dele. Empregara a palavra augustos, e
depois disso Maud convencera-se de que ele estudara na universidade de
Gõttingen. Fora essa a última vez que tivera notícias de A. Easterday, a carta
de agradecimento de seis ou sete anos antes, até ao momento presente. Fixara o
endereço nas costas do envelope. Que poderia querer dela aquele rosto vago,
semi-esquecido, tão longe? Dinheiro? Uma recomendação? Elementos sobre um tema
qualquer? Tomou o envelope na palma da mão. Era muito pesado para se tratar de um
simples pedido. Mais provavelmente se trataria de uma informação. O homem que
lhe escrevia, pensou, tinha alguma coisa a comunicar-lhe.
Pegou na adaga Ashanti,
recordação de uma jornada pela África naqueles dias pré-Gana entre as duas
guerras mundiais, que se encontrava em cima da secretária, e com um golpe apenas
abriu o envelope. Desdobrou as frágeis folhas de papel de correio aéreo. A
carta fora cuidadosamente datilografada numa velha máquina, já em péssimo
estado, pois muitas das palavras apresentavam pequenos buracos, em vez de um e
ou de um o via-se, na maioria das vezes, um furo; contudo, a carta fora batida
com cuidado, laboriosamente, a dois espaços, certos. Ela contou as folhas de
papel de arroz: vinte e duas ao todo. A sua leitura ocupá-la ia durante algum
tempo. Havia a outra correspondência e diversas notas a rever antes da última
aula da manhã. Todavia, sentiu a curiosa e bem familiar censura do segundo ser,
a não intelectual, não-objectiva, segunda Maud Hayden, dissimulada dentro de
si, e isto por se tratar do ser feminino, não científico, intuitivo. Agora,
este segundo ser impunha-se, recordava-lhe os mistérios e as excitações que,
muitas vezes no passado, tinham vindo de terras longínquas. O seu segundo ser
só raramente pedia para ser escutado; porém, quando o fazia, ela não o podia
ignorar. Os seus melhores momentos provinham de tal obediência.
Sem dar ouvidos ao bom senso e
sem se importar com a pressão do tempo, sucumbiu. Tornou a sentar-se,
pesadamente; sem atender ao protesto metálico da cadeira giratória, levou a
carta quase rente aos olhos e, lentamente, começou a ler para si mesma aquilo
que, esperava, talvez constituísse o melhor dos Pequenos Prazeres do dia. PROFESSOR
ALEXANDER EASTERDAY
HOTEL
TEMEHAMI PAPEETE,
TAITI
Dra Maud
Hayden.
Presidente,
Departamento de Antropologia
Edifício
das Ciências Sociais, Sala 309
Raynor
College
Santa
Bárbara, Califórnia
E. U. A.»
In Irving Wallace, As Três Sereias, Livros do Brasil, coleção Dois
Mundos, 2000, ISBN: 978-972-381-025-7.
Cortesia de LBrasil/DMundos/JDACT