domingo, 12 de agosto de 2018

Cem quilos de ouro. Fernando Morais. «A suspeita se transforma em certeza quando uma voz anuncia: isto é um sequestro. Precisamos de um nome para servir de interlocutor e intermediário. Alguém da sua confiança»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Agarraram o seu braço, passaram cuidadosamente o chumaço com éter sobre a pele, como fazem os farmacêuticos, e enfiaram a agulha. O líquido injectado não produziu nenhum efeito, mas Willy achou mais prudente fingir que estava dopado. O carro rodou por duas horas, mais ou menos, com os quatro em silêncio. Pelas gretas do capuz dava para ver que os três gesticulavam muito, como quem não conhece direito o caminho. Andaram no meio do trânsito e depois apanharam algo que parecia ser uma estrada asfaltada. Como Willy se mexesse muito, tentando arrumar uma posição menos incómoda para o corpo, eles pararam o carro no meio do trajecto e um dos homens que ia atrás passou para o banco da frente, permitindo que ele esticasse um pouco mais as pernas. Voltaram a rodar em silêncio até que o carro parou e alguém perguntou em voz baixa: quem vai abrir o portão? O carro entra num lugar fechado e Willy é conduzido ao interior de um espaço de luzes apagadas. Alguém ergue uma lona e, amparando-o como a um cego, força-o a se agachar, quase a se arrastar, para entrar por uma portinhola metálica de pouco mais de meio metro de altura. Pelos ruídos em volta Willy nota que os três que o haviam agarrado na porta da academia ficam noutro espaço e que agora está sob a guarda de outros dois. De cócoras, passa as pontas dos dedos no piso e percebe que é uma superfície de madeira áspera.
Um homem aproxima-se através das grades, então aquilo não era um caixote, mas uma cela, e retira as algemas dos seus braços. Em seguida, ouve uma voz com leve sotaque nordestino: pode tirar o capuz. Dois lençóis e um colchãozinho de solteiro, ralo, vagabundo, são atirados a seus pés. Willy levanta-se e tenta explorar, pelo tacto, o lugar onde se encontra. Em minutos descobre que não é uma cela: está preso numa jaula de circo, feita de grossos canos de ferro, medindo dois metros por um e com 1,80 metro de altura, aparentemente, feita sob medida para o seu tamanho. O único acesso a ela é a portinhola por onde entrou, trancada do lado de fora por dois cadeados enormes. Habituando-se à escuridão, os seus olhos conseguem identificar o resto: a jaula está encostada no canto de um espaço e cercada por um encerado desses usados em caminhões, com as pontas amarradas ao tecto por meio de cordas. A cortina de lona cerca a jaula por todos os lados, menos o de cima. Pelas grades do tecto Willy percebe que é uma construção pobre, de telhado à vista, sem revestimento. No vão entre a parede e as telhas, distingue um fio elétrico que termina numa lâmpada. Só então começa a desconfiar que não vai acontecer o jantar que ele e Cláudia, a sua mulher, tinham combinado com um casal de amigos para aquela sexta-feira à noite.
A suspeita se transforma em certeza quando uma voz anuncia: isto é um sequestro. Precisamos de um nome para servir de interlocutor e intermediário. Alguém da sua confiança. O primeiro nome que lhe vem à cabeça é o de Édson Carvalho Oliveira, seu amigo e vice-presidente financeiro da Bahema. Do outro lado do encerado o homem pergunta: quer escrever um bilhete para ele? Quero. Um para ele e outro para Cláudia, minha mulher. Passaram folhas de papel e uma caneta pelas grades e a lâmpada pendurada no tecto foi acesa. O primeiro bilhete foi para Cláudia:

Cláudia, meu amor. Estou bem, na medida em que é possível estar bem numa cela de dois metros por um. As pessoas que estão tomando conta de mim estão sendo gentis, e até, de certa maneira, amáveis. Só na hora em que fui sequestrado é que houve alguma violência. Pode imaginar a vontade de estar aí com as crianças e você. É tudo que tenho pedido a Deus. Os homens me pediram um homem de confiança para servir de negociador. Dei o nome do Édson, mas não sei se dei o telefone correcto. Em seguida dei o nosso telefone, para não pensar que eu tinha dado uma esticadinha depois da ginástica. Imagino a barra que está passando. Logo estaremos juntos de novo. Espero que isto dure pouco e que permitam que eu lhe escreva. Embora esta não seja a hora mais apropriada para declarações, jamais tive tanta certeza de quanto eu a amo. Beijos para dona Gabriela, dona Cristiana e Guigão. Diz para ele que o pai está no Japão e volta logo. Willy. PS: Não esqueça de mandar beijos para o pai e a mãe.

O bilhete para Édson foi escrito na mesma linguagem informal e bem-humorada e, como no de Cláudia, Willy tentava transmitir a impressão de que os sequestradores eram pessoas de boa índole, que o tratavam bem». In Fernando Morais, Cem quilos de ouro, Companhia das Letras, 2003, ISBN 978-853-590-449-9.

Cortesia da CdasLetras/JDACT