«(…) Ganhava
o pão que comia. Era um escriturário humilde, mas tinha direito a dizer que não
dependia de ninguém.
No dia em
que Tadeu soube que Margarida ia chegar, a sensação que fez vibrar todo o seu
ser, foi violenta de mais para que possa ser descrita. Acudiram-lhe em tropel,
desordenadamente, numa confusão louca, todas as lembranças do passado, todas as
queridas visões daqueles nove anos de êxtase que ele vivera. Estava tudo
intacto num cantinho luminoso da sua alma, onde ele não entrava com medo de
fazer fugir as avezinhas azuis que eram as suas saudades. Margarida! Bebé! A
sua alegria! A loura cabecinha encaracolada, os olhos cor de azul, límpidos,
transparentes, cristalinos, como um céu de Primavera! Os pequeninos braços
gordos e nédios! A boquinha risonha! A voz musical, uma voz de cotovia
acordando os ecos da alvorada! Todo aquele conjunto de graças ia ser dele outra
vez. Com que delicia sôfrega ele não beijaria os pezinhos da sua fada pequenina
e loura! Como lhe contaria tudo que tinha passado longe dela! As saudades sem
consolo, as lágrimas que chorara, as humilhações que sofrera no meio daqueles
perversos de faces rosadas e imberbes, que se tinham constituído em algozes da
sua fraqueza e do seu desamparo! Oh! Amá-la-ia tanto e tanto, que ela havia de
dar-lhe por força um bocadinho de afecto, e esse bocadinho só bastaria a torná-lo
mais feliz do que um rei.
Margarida!
E ao repetir baixinho com um calafrio de prazer este nome querido, via saltar
num raio de sol uma figurinha esbelta, graciosa, de fato muito curto e muito
simples, um vestido branco, um cinto azul, um bibe de cercadura bordada, onde
as amoras colhidas por ele tinham posto uma mancha vermelha, com os espessos
cabelos louros em anéis soltos, e uma risada a vibrar ainda em torno dela como
um rosário de pérolas que se desfiasse dentro de um cofre de cristal. Henrique
julgou que ele endoidecia, e Joaninha com a sua voz velada, onde havia uns toques
de doçura maternal, dizia-lhe: mas olhe que ela é uma senhora! Já não pode ser
a mesma. Não tenha uma esperança que vai converter-se-lhe em martírio! A minha
Margarida, repetia ele alheado, meio louco! A minha filhinha adorada! Nunca
tive uma alegria que dela me não viesse! Todos me tratavam mal, só ela gostava
de mim e me queria sempre ao seu lado. Hás-de vê-la, meu Henrique, verás se há
no mundo uma criança mais linda, mais mimosa, é uma fada, é uma pérola, é a
minha única amiga neste mundo!
No dia
seguinte à hora em que uma brilhante festa de família, uma espécie de baile
muito íntimo, reunia nas salas do marquês todos os parentes, aliados e amigos
que vinham solenizar a chegada da sua filha e herdeira, Tadeu na pequenina sala
de jantar de Henrique, dobrado sobre o peitoril da janela numa postura de
desolação e de abandono, soluçava baixinho, ao pé de Joaninha, que tentava em
vão consola-lo. Estava de casaca, coitadinho; Joana não seria capaz de rir do
desgraçado, mas como a casaca lhe ficava mal! Tinha-se vestido para assistir ao
jantar. Antes do jantar não conseguira ver Margarida. A sra. Margarida vinha
muito cansada, estava no seu quarto. Dormia. Não havia maneira de a acordar.
Eis
as secas respostas que as criadas,
aquelas
perversas, tinham dado ás
suplicas frenéticas do pobre Tadeu. Enquanto a ir ao encontro dela como tanto
sonhara, não tinha podido. O seu tio, agora que lhe descobrira algum préstimo, muito secundário, é verdade, mas
um préstimo em todo o caso, abusava dele
horrorosamente. Tinha-o tornado uma máquina de fazer contas, contas de somar,
de repartir, de multiplicar, o inferno! Não pudera ir, mas esperava vê-la logo
que ela chegasse, vê-la só, poder beijar-lhe as mãos, a testa, os cabelos, os
pés! Vesti-la toda de beijos como dantes! E depois sabia que também ela havia
de ter saudades! Que também se havia de lembrar muito do seu amigo, do seu
Tadeu, do seu cão fiel! Estava impaciente, estava no ar. Mas quando teve a
certeza de que só a veria na sala, foi vestir-se logo, envergou uma casaca do
seu pai que este mandara arranjar para ele, uma casaca muito larga, já fora da
moda, de pano azulado. Que lhe importava! Ia vê-la! Vê-la era o céu. Vinha-lhe
à lembrança aquele ninho de melros que apanhara um dia, sabe Deus com que
trabalho, para lhe dar, e o dia em que ela lhe pedira a lua com um gravidade
tão cómica, apontando para o tanque, e o balouço que ambos tinham projectado fazer, e as histórias que ele lhe contava debaixo
do castanheiro à tarde, enquanto a música do piano suspirava ao longe, e havia
no ar uns rumores indefinidos de que ela lhe perguntava a explicação». In Maria Amália Vaz de Carvalho, Contos
Fantasias e Reflexões (da primeira mulher a ingressar na Academia das Ciências
de Lisboa), 1880, Luso Livros, Nova Forma de Ler, ePub, Uma História
Verdadeira, Wikipedia.
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