«(…)
Me poupar? Não tem como evitar o escândalo, seja quem for, se souberem que
estávamos nós dois sozinhos. A sua posição só me dará mais visibilidade. Esse tipo
de escândalo é o de menos. Na verdade, seria melhor se o magistrado visse o que
aconteceu como uma confusão de amantes. Porque quando ele souber que é filha de
Horatio Kelmsleigh, vai pensar que conseguiu achar uma forma de se encontrar
aqui comigo para me matar e vingar o seu pai. Ela quis rir daquela previsão tão
dramática. Só que, num ápice, viu a sórdida cena através dos olhos do
estalajadeiro. Lord Sebastian estava certo. A sua identidade proporcionaria uma
interpretação diferente, muito pior, dos acontecimentos da noite. O pensamento deixou-a enjoada. Nunca deveria
ter saído da obscuridade segura que encontrara na casa de Daphne. Nunca deveria
ter-se rebelado contra a reviravolta infeliz que a vida dera, ou ser estúpida a
ponto de achar que conseguiria alterar o curso do destino. Lord Sebastian
apontou para a cama.
Não
temos forma de saber quando chegará. Vamos arrumar tudo para conseguir
descansar um pouco com privacidade enquanto eu planeio a melhor maneira de
evitar que seja levada por tentativa de assassinato. Ele fechou as cortinas da
cama com o braço bom. Depois levantou a bainha de um lado e pô-la a meio da
cama para formar um túnel, estreito mas decente, para lhe proporcionar alguma
privacidade. Entre, miss Kelmsleigh, e tente dormir. Não a incomodarei. Está em
perfeita segurança. Ela observou demoradamente a cama. E onde você ficará? Do
outro lado da cortina. Seria perfeitamente inconveniente. Nós já passamos da
fase das conveniências, não acha?
Fez uma
careta de resignação. Envolveu-se no xaile, levantou um canto da cortina e
desapareceu por trás dela. Estavam aprisionados, de todas as maneiras, e não
havia espaço para cerimónias. Ele não podia passar a noite sentado na cadeira
com aquele braço e provavelmente também não permitiria que o fizesse cedendo a
cama a ele. Deitou-se de lado, encolhida, e fechou os olhos. Apesar da
exaustão, seu corpo parecia a corda esticada de um arco. Não parava de ouvir os
pequenos ruídos da movimentação dele no quarto.
Em
seguida, afundou-se no colchão, do outro lado da cortina esvoaçante. Sentiu a
presença dele aquecendo-a, apesar de não se tocarem em parte nenhuma. Tentou
dormir. Era impossível. Ele estava logo ali. Imaginou aproximando-se dela e... A
ideia deixou-a chocada. Assim como a reacção de seu corpo. Tentou dirigir os
pensamentos para outras coisas, para a mãe e Sarah, para o pai. Até para Roger.
Nada daquilo foi de grande ajuda. Em vez disso, a intimidade da situação
saturava o quarto, tornando-se impositiva. Era pior do que estar numa carruagem
apinhada de estranhos. Nessa situação podia fingir que eles não estavam lá e
ignorar a proximidade física, que em qualquer outra ocasião seria malquista. E
todos continuavam a ser estranhos uns aos outros, mesmo se algum gostasse de
falar, porque a conversa não era sobre nada importante. No fim da viagem
desapareciam, assim como a intimidade, como se nada tivesse acontecido. Lord
Sebastian não desapareceria. De manhã teria de enfrentá-lo e não podia fingir
que nada daquilo ocorrera. Também não era nenhum estranho, e a conversa dele
tratara de coisas muito importantes. E ele a havia beijado. E ela permitira.
Era aquilo que a deixava verdadeiramente assustada e, sim, na expectativa. Dera
motivos para pensar que se ele se aproximasse poderia não se importar. Era isso
que aprofundava aquela consciência que tinha do corpo que estava ao lado, ali,
daquela forma tão escandalosa, alarmante, permanente.
Ele
também não dormiu. Sabia. Por isso não se atreveu a se mexer. Nem um pouquinho,
a noite toda. Sebastian esperou quinze minutos sentado na cadeira de madeira
com o braço latejando. Depois, deitou completamente vestido, de bota e tudo, do
lado da cama que ficara exposto pela sua obra com as cortinas. Suou muito,
literalmente, para evitar sequer tocar na nuvem de tecido que a protegia. Simplesmente
descansar o ombro e o braço ajudava. Ou talvez ter uma presença feminina tão
perto o distraísse do ferimento. Assim como a maioria dos homens, talvez mais
do que a maioria, tendia a ter fantasias sensuais. Sorriu pesarosamente ao
notar que por dentro sinais de excitação o excitavam, só de ouvir a débil
respiração dela. Que pena! Ali estava
ele, vestido com casaco e bota, na situação mais casta que era possível criar
em tal desastre, e ainda assim o corpo o incitava a especular sobre as
possibilidades». In
Madeline Hunter, Deslumbrante, Edições ASA, 2013, ISBN 978-989-232-372-5.
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