«(…) Aliás, na mesma embarcação, o capitão e Manuel Mendonça
passaram a viagem a acusar-se mutuamente, acabando o vice-rei por autorizar a
transferência de Manuel Mendonça com os seus criados para o patacho Santa
Teresa. Na almiranta é um grupo de degredados que, com a conivência de dois
religiosos, ao que parece, provocaram distúrbios. E os exemplos poderiam
multiplicar-se. Os castigos são quase sempre a prisão, os trabalhos na bomba e
nos batéis. Mas também o julgamento de alguns casos é adiado para Goa.
Se
esta viagem foi marcada por alguma normalidade, tem, porém, a particularidade
de nela ter participado um vice-rei que, por essa razão, assumi u o comando
supremo da armada. Os navios seguiram em conserva e apenas o patacho Santa
Teresa de Jesus se ausentou durante alguns dias, o que causou alguma
preocupação. As embarcações comunicaram entre si através de batéis e houve uma
correspondência assídua trocada com os comandos, as ordens religiosas, o
auditor, ou com algumas outras pessoas de relevo social. Mas a circulação de gente
entre navios também ocorreu, ou por necessidade de serviço, ou por simples
visita de cortesia e distracção. Sempre que o tempo o permitiu, foi tirada a
coordenada do lugar e, algumas vezes, medida a altura com o prumo. O confronto
destes elementos entre pilotos foi muitas vezes feito, como solicitada a
opinião de capitães e pilotos experientes sobre algumas decisões importantes a
tomar.
Em
22 de Agosto de 1655 desembarcava em Goa o vice-rei Rodrigo Lobo Silveira. A
conjuntura político-militar no Estado da Índia exigia um governante competente
e avisado. O governador em exercício, Brás Castro, havia tomado conta da
administração do Estado em condições irregulares, já que tinham resultado de um
motim chefiado pelo secretário de estado José Chaves Sotomaior e em que fora
também um dos promotores. Apesar disso, manter-se-ia no governo por três anos. A
somar a esta crise política, a defesa da Cidade de Goa mostrava-se incapaz de
poder resistir a um ataque inimigo. Estava sem muros e com poucos moradores,
alertava a vereação goesa. As demais fortalezas do Estado da Índia davam
mostras de não poderem sobreviver aos ataques sucessivos perpetrados por
naturais e europeus.
Mascate
caíra em 1650, arrastando as fortalezas em redor. Diu, bloqueado por uma armada
holandesa, via-se impossibilitada de comerciar com Moçambique, Pate e Meca. Com
dificuldade resistia Chaul à pressão dos mouros sobre o seu termo. No Canará os
holandeses pressionavam os reis locais a manterem o cerco às fortalezas portuguesas,
como forma de impedir a saída da pimenta e do arroz, este essencial à sobrevivência
de Goa. E, fracassadas as diligências diplomáticas e sem recursos para uma
defesa eficaz e, muito menos, para uma ofensiva militar, Barcelor é abandonada
e Mangalar entregue ao inimigo. Onor terá o mesmo destino, já que, após heroica
mas malograda resistência, por decisão do Conselho de Governo de Goa é
desmantelada a fortaleza e mandada recolher a Goa a sua gente. Muito ruim
exemplo para conservação do povo que tínhamos na Índia, comentava assim um
contemporâneo este acontecimento.
As
posições portuguesas no Malabar sofriam das mesmas maleitas. Cranganor, com as
muralhas arruinadas e sem guarnição suficiente, não resistiria a qualquer
embate organizado. E, no Kerala, a cidade de Cochim e o forte de Coulão,
desguarnecidos de meios de defesa, estavam prontos a render-se ao inimigo.
Também a decadência comercial e política das cidades de Negapatão e São Tomé de
Melia por no Coromandel, prenunciavam o ocaso da presença portuguesa, até
porque a vizinhança holandesa em Paliac até lhe retirava qualquer pretensão de
ressurgimento económico imediato. Aliás, estes haviam saqueado recentemente
Tuticorim, na costa da Pescaria, centro produtor de aljôfar.
No
restante Estado a situação era análoga. Moçambique achava-se desprovido do
essencial e a indisciplina militar grassava de tal modo, que alguns soldados
haviam morto à paulada um dos seus oficiais. No Extremo-Oriente, as arremetidas
holandesas haviam feito paralisar o comércio de Macau devido ao encerramento do
estreito de Malaca, enquanto os castelhanos de Manila constituíam também uma
ameaça de peso . As carências da administração eram enormes e avolumara-se o
descontentamento da população que, amotinada, trucidara o capitão-mor. Em
Timor, os holandeses apoderavam-se da tranqueira de Cupão e instalavam-se
definitivamente na ilha». In Artur Teodoro Matos, Diário do conde
de Sarzedas, Vice-rei do Estado da Índia (1655 -1656), Lisboa, colecção Outras
Margens, CNCDPortugueses, 2001, ISBN 972-787-052-X.
Cortesia de CNCDP/JDACT