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Sendo os italianos acima de tudo pragmáticos, muitos
acreditam que se não tivesse sido Pietro Lorenzoni, o pai do actual conde,
outra pessoa teria revelado o local do esconderijo dos líderes da comunidade judaica
à SS (maldita). Outros sugerem que ele deve ter sido ameaçado para fazer o que
fez, afinal, depois que a guerra acabou, membros dos vários ramos da família se
devotaram ao bem da cidade, não apenas com seus muitos actos de caridade e
generosidade a instituições públicas e privadas, mas também por terem assumido
diversos cargos administrativos, até mesmo o de prefeito, embora por apenas
seis meses, tendo servido com distinção, como se diz, em diversos cargos
públicos. Um dos Lorenzoni foi reitor da Universidade; outro, nos anos
sessenta, foi por um período o curador da Bienalle; outro ainda, após a sua
morte, legou sua colecção de miniaturas islâmicas ao museu Correr. Mesmo que
não recordassem nenhum desses factos, a maioria dos habitantes da cidade ligava
o nome ao do jovem que fora sequestrado dois anos antes, levado por dois homens
mascarados enquanto ele e a namorada estavam estacionados na frente dos portões
da villa
que a família tinha nos arredores de Treviso. Como a garota chamou
primeiro a polícia, e não a família, os bens dos Lorenzoni foram congelados
imediatamente, antes mesmo que eles fossem informados do crime. O primeiro
pedido de resgate, quando chegou, exigia sete bilhões de liras, e à época houve
muita especulação sobre a capacidade dos Lorenzoni de levantar tanto dinheiro.
O pedido seguinte, feito três dias depois do primeiro, reduzia o montante para
cinco bilhões.
Mas, então, as forças da ordem, embora não apresentassem
sinais claros de progresso na descoberta dos responsáveis, cumpriram o
protocolo em casos de sequestro e conseguiram bloquear todas as tentativas da
família de conseguir um empréstimo ou trazer dinheiro de suas fontes no
exterior, de modo que o segundo pedido tampouco foi atendido. O conde Ludovico,
pai do rapaz sequestrado, apareceu na televisão nacional implorando aos
responsáveis que libertassem o seu filho, afirmando que se oferecia para ficar
no lugar dele, embora estivesse muito abalado para explicar de que modo isso
poderia ser feito. Não houve resposta a seu apelo, nem um terceiro pedido de
resgate. Desde então, não houve mais sinal do rapaz, Roberto, e nenhum
progresso, pelo menos oficial, na elucidação do caso. Os bens da família
permaneceram bloqueados por seis meses e depois ficaram por mais um ano sob o
controle de um administrador indicado pelo governo, ao qual cabia autorizar ou
não o saque ou o pagamento de qualquer quantia superior a um milhão de liras.
Foram muitas as somas desse nível que a família Lorenzoni despendeu durante
aquele período, mas todas eram legítimas, recebendo portanto autorização para
serem quitadas. Cessados os poderes do administrador, uma suave vigília
governamental, discreta ao ponto da invisibilidade, continuou a monitorar os
negócios e os gastos dos Lorenzoni, mas não constatou nenhum dispêndio acima do
normal para a administração dos negócios.
Embora a lei determinasse que se esperasse mais três anos
para que fosse declarada oficialmente a morte do rapaz, a família já o dava por
morto. Seus pais viveram o luto à sua maneira: o conde Ludovico passou a se
dedicar em dobro aos negócios, enquanto a condessa recolheu-se à devoção
privada e dedicou-se a actos de piedade e caridade. Roberto era filho único, e
a família ficou sem herdeiro, o que levou um sobrinho, o filho do irmão mais
novo de Ludovico, a ser iniciado nos negócios e preparado para assumir a direcção
das empresas, que incluíam grandes e variadas firmas na Itália e no exterior.
A notícia de que o esqueleto de um jovem portando um anel
com o brasão dos Lorenzoni tinha sido encontrado foi comunicada por telefone à
polícia de Veneza do aparelho de uma das viaturas dos carabinieri, sendo recebida pelo sargento
Lorenzo Vianello, que com cautela anotou o lugar, o nome do proprietário do
terreno e o do homem que havia encontrado o esqueleto. Ao desligar, Vianello
dirigiu-se ao andar acima do seu e bateu à porta de seu superior imediato, o commissario Guido
Brunetti. Ao ouvir um sonoro Avanti,
Vianello empurrou a porta e entrou. Buon dì, commissario,
cumprimentou
e, sem ser convidado, assumiu o seu lugar de costume na cadeira de frente para
Brunetti, que estava sentado à sua escrivaninha, com uma enorme pasta aberta à
sua frente. Vianello notou que o seu superior estava usando óculos, mas não se
lembrava de tê-los visto antes. E desde quando o senhor usa óculos, chefe? Brunetti
olhou para a frente, os seus olhos estranhamente ampliados pelas lentes. São
apenas para leitura, explicou, tirando-os e jogando-os sobre os papéis à sua
frente. Na verdade, não preciso deles. É que tornam mais fácil a leitura dessas
letrinhas miúdas dos documentos de Bruxelas.
Com o polegar e o indicador, ele esfregou a ponte do nariz,
como se para remover a marca deixada pelos óculos e também a que fora deixada
pelos documentos que ele estava lendo. Continuando a olhar para o sargento,
perguntou: do que se trata? Recebemos um telefonema dos carabinieri vindo de um local
chamado... Ele começou, olhando em seguida para baixo, para o pedaço de papel na
sua mão. Col di Cugnan. Fez então uma pausa, mas Brunetti não disse nada. Fica
na província de Belluno, como se dar a Brunetti uma ideia mais clara da
geografia fosse útil de algum modo. Brunetti continuou mudo, e Vianello
prosseguiu: um fazendeiro de lá descobriu um corpo arando um terreno.
Aparentemente, é de um jovem com vinte e poucos anos de idade. Segundo quem?,
interrompeu Brunetti. Acho que segundo o medico legale, senhor. E quando foi
isso? Ontem. E por que nos accionaram? Porque um anel com o brasão dos
Lorenzoni foi achado junto ao corpo. Brunetti levou novamente os dedos à ponte
do nariz e fechou os olhos». In Donna
Leon, O Fardo da Nobreza, 1997, Companhia das Letras, 2012, ISBN
978-853-592-056-7.
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