O reverendo
padre Lefèvre
«(….)
Tinha agora a fonte mais escampada, por lhe rarearem os cabelos, e isso
fazia com que ela parecesse mais vasta, dando à figura do ex-estudante
saboiardo uma expressão de severa majestade, que incutia respeito. Lefèvre
saudou Diana com uma ligeira inclinação quando esta ao entrar se curvou
profundamente. Perdoai-me, meu padre, disse a viúva, se não vim tão depressa
como desejava; mas uma visita de cerimónia… Não foi por causa dessa visita de
cerim+onia que perdestes tanto tempo, minha filha, disse o padre, que com um
olhar rápido tinha observado o vestido de Diana. Perdestes também alguns
instantes para enganar o vosso pai espiritual. Eu!, exclamou Diana, cheia de
confusão. Sim, vós…, receastes que eu achasse demasiado mundano o vestuário com
que recebestes o príncipe Henrique, e mudastes de vestido. . . como se a vista
de um sacerdote pudesse ser perturbada pelo que desperta a admiração e os
desejos dos outros homens. Em outra qualquer ocasião a senhora de Brezé ficaria
maravilhada por ver que um estranho assim adivinhava os seus mais íntimos
pensamentos; mas o padre Lefèvre já por vezes lhe dera tais provas da sua omnisciência,
que a condessa já de nada se espantava.
Inclinou a fronte, que passado um momento, ergueu. Então cometi um pecado?,
perguntou ela. Pecado? Não; além de que, bem sabeis, minha filha, que nós
procedemos com brandura e circunspecção, antes de considerarmos pecaminoso um acto
qualquer. Entretanto, tivestes um trabalho inútil, o que é muito para sentir,
dada a importância da vossa missão. Mas não falemos mais disso… Viestes para
vos confessardes? Sim, meu padre, disse Diana. Preciso de encontrar nas
palavras e nos conselhos de Vossa Paternidade um conforto às dúvidas, que me
amarguram a vida. Supliquei-vos que fósseis o meu director espiritual, porque a
vossa fama de piedade, de saber, de austeridade… Obrigado, minha filha. A
Companhia de Jesus foi instituída há poucos anos, mas o Senhor abençoou os
nossos esforços, e hoje já dirigimos a consciência dos mais ilustres
personagens católicos. De resto, os pecados que tendes confiado ao tribunal da
penitência têm sido sempre tão leves, que na verdade, mesmo para um pobre padre
ignorante como eu, e o frade inclinou-se com orgulhosa modéstia, não é difícil
tarefa manter-vos sempre no caminho da salvação. Diana parecia hesitar.
Meu padre, disse ela afinal, tenho de fazer-vos confissão de algumas faltas
mais graves; mas primeiro desejava saber…, se é certo…, como se diz... Eu
concluo a vossa frase, filha. Desejais saber se é certo, como se diz, que os
padres da Companhia de Jesus têm para com os pecadores uma indulgência muito
superior à que costumam ter os outros confessores; se é verdade que eles têm os
meios de diminuir aos olhos dos pecadores a gravidade das suas faltas, e de
reconciliar com Deus, sem sacrifícios…. É isto que desejais saber minha filha? É,
meu padre..., ou pelo menos alguma cousa parecida. Pois bem, ficai então
sabendo que esta nossa indulgência que os descrentes nos censuram como uma
culpa gravíssima, é verdadeira. Diana fez um gesto de espanto. Oh! Entendamo-nos!,
disse com o seu frio sorriso o padre Lefèvre, nós somos tão severos como os
outros, quando trata de culpas cometidas com pura maldade e só com a intenção
de fazer mal; mas, quando julgamos os pecados, sabemos distinguir o elemento mau
da intenção, das circunstâncias e dos impulsos exteriores; e quanto mais fortes
são estes, tanto mais benévolos somos em perdoar a queda.
Não vos compreendo bem, meu padre, disse a jovem viúva, tornando-se
pensativa. Eu vos apresento um exemplo, disse o jesuíta, envolvendo num olhar
perscrutador toda a pessoa da condessa. Suponhamos que uma jovem, vendo passar
um príncipe belo, valoroso galante, lhe corre ao encontro e se lhe lança aos
pés, oferecendo-se o corpo; essa tal seria uma mulher perdida, uma cortesã
dissoluta, uma condenada às penas eternas, que sofrem os que pecam por luxúria.
E então ?..., perguntou Diana em grande ânsia. Mas suponhamos agora que aquele
príncipe, tanto mais pronto a irar-se, quanto mais poderoso, tinha resolvido
fazer morrer o pai daquela jovem. Suponhamos que ela resgatou, à custa da
própria honra, a vida de seu pai, e nesse caso converteu-se ela numa Judite,
transformou-se numa heroína. Padre! Padre! Que dizeis!, exclamou a condessa. Porventura
conheceríeis vós alguma jovem, alguma mulher que se achasse nestas
circunstâncias?, perguntou com absoluta tranquilidade o padre Lefèvre. Diana,
completamente abatida, deixou pender os braços. Eles sabem tudo; murmurou, sabem
tudo, e eu, como louca, quero competir com eles… Com estes aliados serei tudo,
sem eles não serei nada… Oh! É preciso que eu me decida! E resolutamente,
voltando-se para o jesuíta, disse-lhe: meu padre, tende a bondade de me ouvir
de confissão. Estou pronto, minha filha, respondeu o jesuíta, disfarçando um
sorriso de triunfo, que lhe despontava nos lábios. Diana sentou-se num escabelo
forrado de veludo, e o sacerdote numa cadeira. Meu padre, já sabeis que sou
filha do conde de Saint-Vallier, o nobre fidalgo, que auxiliou a fuga do duque
de Bourbon, e que por tal facto foi condenado à morte pelo rei Francisco I. Nem
os rogos dos amigos, nem as súplicas dos parentes, conseguiram obter para o
condenado a clemência do rei. Então, eu, enchendo-me de coragem, corri à corte
e lancei-me aos pés do soberano. Foi uma imprudência da minha parte, não é
assim, meu padre? Era esse o vosso dever de filha, respondeu o jesuíta,
impassível. Continuai. O rei recebeu-me afectuosamente, e quase com respeito:
ordenou que se suspendesse por um dia a execução, que estava marcada para o dia
seguinte. Quando eu me erguia do chão, onde me tinha prostrado para lhe fazer
aquele pedido, o rei murmurou-me ao ouvido: esta noite…, conceder-te-ei
completamente..., o perdão de teu pai. Eu quis protestar, quis resistir, mas o
soberano disse-me com altiva frieza: dize que não, e a cabeça do conde de
Saint-Vallier rolará do patíbulo na praça de Greve». In Ernesto
Mezzabota, O Papa Negro, 1947, tradução de Adolfo Portela, Brasil, Exilado dos Livros, Epub, 2001, ISBN
858-671-001-6.
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