«(…)
E essa luz, vemo-la, com efeito, no quadro, parecendo emergir no interstício da
moldura; e de lá ela alcança afronte,
as faces, os olhos, o olhar do pintor que segura numa das mãos a palheta e, na outra,
o fino pincel... Assim se fecha a voluta, ou melhor, por essa luz, ela se abre.
Essa abertura não é mais, como no fundo, uma porta que se abriu; é a própria amplitude
do quadro, e os olhares que por ela passam não são de um visitante longínquo. O
friso que ocupa o primeiro e o segundo planos do quadro representa, se se
incluir o pintor, oito personagens. Cinco delas, a cabeça mais ou menos inclinada,
virada ou abaixada, olham na direcção perpendicular do quadro. O centro do
grupo é ocupado pela pequena infanta, com o seu amplo vestido cinza e rosa. A princesa
vira a cabeça para a direita do quadro, enquanto o seu busto e os grandes folhos
do vestido pendem ligeiramente para a esquerda; o olhar, porém, dirige-se aprumado
na direcção do espectador que se acha em face do quadro. Uma linha mediana que
dividisse a tela em duas alas iguais passaria entre os dois olhos da criança. O
seu rosto está a um terço da altura total do quadro. De sorte que aí reside, sem
dúvida, o tema principal da composição; aí, o objecto mesmo dessa pintura. Como
que para prová-lo e melhor sublinhá-lo, o autor recorreu a uma figura tradicional:
ao lado da personagem principal, colocou outra, ajoelhada, que a olha.
Como um ofertante em prece, como
o Anjo saudando a Virgem, uma governanta de joelhos estende as mãos para a
princesa. O seu rosto recorta-se num perfil perfeito. Está à altura do da
criança. A aia olha para a princesa e só para ela. Um pouco mais à direita,
outra dama de honor, voltada também para a infanta, ligeiramente inclinada acima
dela, mas com os olhos claramente dirigidos para a frente, lá onde já olham o pintor
e a princesa. Enfim, dois grupos de duas personagens: um, em recuo; outro, composto
de anões, no primeiro plano. Em cada par, uma personagem olha em frente, a outra
à direita ou à esquerda. Pela sua posição e pela sua proporção, esses dois
grupos se correspondem e se emparelham: atrás, os cortesãos (a mulher, à esquerda,
olha para a direita); à frente, os anões (o rapaz que está na extremidade direita
olha para o interior do quadro). Esse conjunto de personagens assim dispostas pode
constituir, conforme a atenção que se dê ao quadro ou o centro de referência que
se escolha, duas figuras. Uma seria um grande X; no ponto superior esquerdo estaria
o olhar do pintor e, à direita, o do cortesão; na ponta inferior, do lado esquerdo,
está o canto da tela representada de costas (mais exatamente, o pé do cavalete);
do lado direito, o anão (com o calçado deposto sobre o dorso do cão). No cruzamento
dessas duas linhas, no centro do X, o olhar da infanta. A outra figura seria
antes a de uma vasta curva; as suas duas pontas seriam determinadas pelo pintor
à esquerda e pelo cortesão à direita, extremidades altas e recuadas; o
recôncavo, bem mais aproximado, coincidiria com o rosto da princesa e com o
olhar que a aia lhe dirige. Essa ténue linha desenha uma concha que, ao mesmo
tempo, encerra e libera, no meio do quadro, a localização do espelho.
Há, pois, dois centros que podem
organizar o quadro, conforme a atenção do espectador divague e se prenda aqui
ou ali. A princesa mantém-se de pé no meio de uma cruz de Santo André, que gira
em torno dela com o turbilhão dos cortesãos, damas de honor, animais e bufões.
Mas essa rotação é fixa. Fixa por um espectáculo que seria absolutamente
invisível se essas mesmas personagens, subitamente imóveis, não oferecessem,
como que no vão de uma taça, a possibilidade de olhar no fundo de um espelho, o
dúplice imprevisto de sua contemplação. No sentido da profundidade, a princesa
se superpor ao espelho; no da altura, é o reflexo que se superpõe ao rosto. Mas
a perspectiva torna-os muito próximos um do outro. Ora, cada um deles emana uma
linha inevitável; uma, saída do espelho, transpõe toda a espessura representada
(e mesmo além dela, já que o espelho perfura a parede do fundo e faz nascer atrás
dela um outro espaço); a outra é mais curta; vem do olhar da criança e só
atravessa o primeiro plano. Essas duas linhas sagitais são convergentes,
segundo um ângulo muito agudo, e o ponto do seu encontro, saindo da tela, se
fixa à frente do quadro, mais ou menos lá de onde o olhamos. Ponto duvidoso,
pois que não o vemos; ponto, porém, inevitável e perfeitamente definido, pois
que é prescrito por essas duas figuras mestras e confirmado ainda por outros pontilhados
adjacentes que nascem do quadro e que também dele escapam». In Michel Foucault, As
Palavras e as Coisas, 1966, Livraria Martins Fontes Editora, 1981, 2000, ISBN
853-360-997-3.
Cortesia de LMFontesE/JDACT