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«(…) Quando lhe disseram, na
segunda classe, que teria de usar óculos para ler e para ver cinema, Owen
chorou. Um dia, consolava-se a si mesmo, iria deixar de precisar deles. Talvez
o facto de os ter encontrado não fosse exactamente um milagre, porque ele
tomava aquele atalho por cima das ervas todos os dias para se encontrar com
Buddy Rourke, o seu amigo da classe a seguir, para irem juntos para a escola,
afastados do grupo de raparigas da 2ª Sfteet. Buddy perdera o pai, o que o
tornava estranho e ligeiramente assustador. Era carrancudo e tinha pêlos entre
as sobrancelhas. Tinha um cabelo liso e grosso, espetado para a frente, e uma
boca que nunca sorria por causa do aparelho, uns arames de metal brilhante com
um quadrado prateado no meio de cada dente. Owen teve vontade de correr até
casa para contar à mãe que tinha encontrado os óculos e que o pai não ia ter de
comprar uns novos, mas não se queria atrasar para ir ao encontro de Buddy e
prosseguiu, apressado, com o estojo recuperado a deixar húmido o bolso dos seus
calções, fazendo a pele da coxa arrepiar-se. Uma outra manhã, bem cedo, Owen
ouviu o som de um tiro que vinha daquele lado da casa, para lá do terreno
baldio. Ele estava a dormir. Parecia ter acordado no momento antes de escutar, como
num sonho, o barulho que o acordou. Tinha visto filmes de gangsters vezes
suficientes para reconhecer o som da pólvora sob percussão, mas nos filmes
surgia em vagas de metralhadora, enquanto este era um som único e isolado. Os
pais ouviram-no também, porque se agitaram no quarto deles, atrás da sua porta fechada,
e as duas vozes, masculina e feminina, entrelaçaram-se. Depois, ficaram
novamente em silêncio. Não estava muito escuro lá fora; as árvores no quintal ao
lado eram silhuetas, volumes que emergiam daquela mancha de luz cinzenta, com
um ligeiro tom rosado no céu, antes de os pássaros começarem a chilrear. A rua
estava silenciosa, despojada de trânsito, nem mesmo uma carroça. Mais tarde,
Owen ouviu uma sirene e, mais tarde ainda, a notícia, relatada ao pequeno-almoço
pelo pai, que tinha ido à rua saber as novidades, de que um jovem da casa dos
Hoffmans, duas portas a seguir ao terreno baldio, se tinha alvejado a si
próprio com um revólver da tropa, um Colt 38 que Wes Hoffman guardara do seu tempo
de serviço na Primeira Guerra Mundial. Danny Hoffman não tinha ainda vinte
anos, mas uma criança sob a sua guarda num acampamento de Verão tinha
mergulhado em água pouco profunda e partido o pescoço. A responsabilidade
assombrava-o, apesar de aquilo ter acontecido no ano anterior. Danny nunca mais
voltara a ser o mesmo; ficava em casa a escutar as séries da rádio e deixara de
procurar emprego.
Estava explicado. Ao longo de uma
dúzia de anos, desde a Depressão à Segunda Guerra Mundial, de 1933 a 1945, este
foi o evento mais dramático no bairro de Owen. A mulher do outro lado da rua, mrs.
Yost, tinha uma bandeira com uma estrela de cinco pontas na janela da frente,
mas os seus cinco filhos soldados voltaram sãos e salvos. Skip Potteiger
engravidou Mary Lou Brumbach, da casa ao lado, quando ela tinha apenas dezassete
anos, mas a seguir casou com ela, portanto, ficou tudo bem, no Dia D, o bebé
estava num carrinho que Mary Lou empurrava a caminho da Acme, por cima dos
regos que levavam a água dos algerozes para as valetas e pelas lajes do passeio
que as raízes dos castanheiros estavam a levantar, e que faziam as pessoas
tropeçar quando andavam de patins. Nas tardes quentes de Verão, os sons das
brigas familiares atravessavam a rua, vindos das janelas de rede da fila compacta
das casas do outro lado, o lado alto, ao cimo das escadas de cimento dos muros
que se inclinavam precariamente para fora. Mas não havia divórcios, de acordo com
o que Owen recordava. Havia vozes alteradas e o som dos gritos e das portas a
bater atravessava a vizinhança, mas os divórcios aconteciam noutros sítios, em
Hollywood e em Nova Iorque, e eram escândalos trágicos, produzindo aquilo que
ninguém, e certamente nenhuma criança, desejava: um lar desfeito.
A
própria frase tinha um som terrível e pecaminoso e um gosto a cinzas de
desastre, como as casas bombardeadas a fumegar que preenchiam os noticiários da
Fox Movietone no Scheherazade, a sala de cinema local. O mundo estava cheio de destruição
e de maldade, e apenas os Estados Unidos, ao que parecia, o podiam endireitar.
O país estava em guerra e, na fantasia de Owen, o terreno baldio que ele via da
janela do seu quarto era a cratera de uma bomba coberta pelas ervas. O
salgueiro original mantinha-se vivo, mimado como um velho dignitário com
injecções de pesticida e fertilizante nas suas raízes, através de buracos
feitos com um pé-de-cabra; sobrevivia desde o tempo em que tinha havido uma
fábrica de papel com uma azenha, um lago cheio de trutas e uma pista de terra
para corridas de atrelados, antes de traçarem uma rede de ruas na planície
baixa a norte do Pike. A casa de Owen, que, na verdade, não era a sua casa, nem
mesmo a dos seus pais; ela pertencia aos pais da mãe dele, Isaac e Anna Rausch,
era uma das maiores e mais antigas ao longo da Mifflin Avenue, comprada pelo
seu avô quando se julgou rico, com o lucro da sua plantação de tabaco durante a
Primeira Guerra Mundial». In John Updike, Pecados e Seduções, 2004,
Civilização Editora, 2008, ISBN 978-972-262-676-7.
Cortesia
de CivilizaçãoE/JDACT