sexta-feira, 28 de setembro de 2018

Pecados e Seduções. John Updike. «A própria frase tinha um som terrível e pecaminoso e um gosto a cinzas de desastre, como as casas bombardeadas a fumegar que preenchiam os noticiários da Fox…»


jdact

«(…) Quando lhe disseram, na segunda classe, que teria de usar óculos para ler e para ver cinema, Owen chorou. Um dia, consolava-se a si mesmo, iria deixar de precisar deles. Talvez o facto de os ter encontrado não fosse exactamente um milagre, porque ele tomava aquele atalho por cima das ervas todos os dias para se encontrar com Buddy Rourke, o seu amigo da classe a seguir, para irem juntos para a escola, afastados do grupo de raparigas da 2ª Sfteet. Buddy perdera o pai, o que o tornava estranho e ligeiramente assustador. Era carrancudo e tinha pêlos entre as sobrancelhas. Tinha um cabelo liso e grosso, espetado para a frente, e uma boca que nunca sorria por causa do aparelho, uns arames de metal brilhante com um quadrado prateado no meio de cada dente. Owen teve vontade de correr até casa para contar à mãe que tinha encontrado os óculos e que o pai não ia ter de comprar uns novos, mas não se queria atrasar para ir ao encontro de Buddy e prosseguiu, apressado, com o estojo recuperado a deixar húmido o bolso dos seus calções, fazendo a pele da coxa arrepiar-se. Uma outra manhã, bem cedo, Owen ouviu o som de um tiro que vinha daquele lado da casa, para lá do terreno baldio. Ele estava a dormir. Parecia ter acordado no momento antes de escutar, como num sonho, o barulho que o acordou. Tinha visto filmes de gangsters vezes suficientes para reconhecer o som da pólvora sob percussão, mas nos filmes surgia em vagas de metralhadora, enquanto este era um som único e isolado. Os pais ouviram-no também, porque se agitaram no quarto deles, atrás da sua porta fechada, e as duas vozes, masculina e feminina, entrelaçaram-se. Depois, ficaram novamente em silêncio. Não estava muito escuro lá fora; as árvores no quintal ao lado eram silhuetas, volumes que emergiam daquela mancha de luz cinzenta, com um ligeiro tom rosado no céu, antes de os pássaros começarem a chilrear. A rua estava silenciosa, despojada de trânsito, nem mesmo uma carroça. Mais tarde, Owen ouviu uma sirene e, mais tarde ainda, a notícia, relatada ao pequeno-almoço pelo pai, que tinha ido à rua saber as novidades, de que um jovem da casa dos Hoffmans, duas portas a seguir ao terreno baldio, se tinha alvejado a si próprio com um revólver da tropa, um Colt 38 que Wes Hoffman guardara do seu tempo de serviço na Primeira Guerra Mundial. Danny Hoffman não tinha ainda vinte anos, mas uma criança sob a sua guarda num acampamento de Verão tinha mergulhado em água pouco profunda e partido o pescoço. A responsabilidade assombrava-o, apesar de aquilo ter acontecido no ano anterior. Danny nunca mais voltara a ser o mesmo; ficava em casa a escutar as séries da rádio e deixara de procurar emprego.
Estava explicado. Ao longo de uma dúzia de anos, desde a Depressão à Segunda Guerra Mundial, de 1933 a 1945, este foi o evento mais dramático no bairro de Owen. A mulher do outro lado da rua, mrs. Yost, tinha uma bandeira com uma estrela de cinco pontas na janela da frente, mas os seus cinco filhos soldados voltaram sãos e salvos. Skip Potteiger engravidou Mary Lou Brumbach, da casa ao lado, quando ela tinha apenas dezassete anos, mas a seguir casou com ela, portanto, ficou tudo bem, no Dia D, o bebé estava num carrinho que Mary Lou empurrava a caminho da Acme, por cima dos regos que levavam a água dos algerozes para as valetas e pelas lajes do passeio que as raízes dos castanheiros estavam a levantar, e que faziam as pessoas tropeçar quando andavam de patins. Nas tardes quentes de Verão, os sons das brigas familiares atravessavam a rua, vindos das janelas de rede da fila compacta das casas do outro lado, o lado alto, ao cimo das escadas de cimento dos muros que se inclinavam precariamente para fora. Mas não havia divórcios, de acordo com o que Owen recordava. Havia vozes alteradas e o som dos gritos e das portas a bater atravessava a vizinhança, mas os divórcios aconteciam noutros sítios, em Hollywood e em Nova Iorque, e eram escândalos trágicos, produzindo aquilo que ninguém, e certamente nenhuma criança, desejava: um lar desfeito.
A própria frase tinha um som terrível e pecaminoso e um gosto a cinzas de desastre, como as casas bombardeadas a fumegar que preenchiam os noticiários da Fox Movietone no Scheherazade, a sala de cinema local. O mundo estava cheio de destruição e de maldade, e apenas os Estados Unidos, ao que parecia, o podiam endireitar. O país estava em guerra e, na fantasia de Owen, o terreno baldio que ele via da janela do seu quarto era a cratera de uma bomba coberta pelas ervas. O salgueiro original mantinha-se vivo, mimado como um velho dignitário com injecções de pesticida e fertilizante nas suas raízes, através de buracos feitos com um pé-de-cabra; sobrevivia desde o tempo em que tinha havido uma fábrica de papel com uma azenha, um lago cheio de trutas e uma pista de terra para corridas de atrelados, antes de traçarem uma rede de ruas na planície baixa a norte do Pike. A casa de Owen, que, na verdade, não era a sua casa, nem mesmo a dos seus pais; ela pertencia aos pais da mãe dele, Isaac e Anna Rausch, era uma das maiores e mais antigas ao longo da Mifflin Avenue, comprada pelo seu avô quando se julgou rico, com o lucro da sua plantação de tabaco durante a Primeira Guerra Mundial». In John Updike, Pecados e Seduções, 2004, Civilização Editora, 2008, ISBN 978-972-262-676-7.
                                                          
Cortesia de CivilizaçãoE/JDACT