«(…) Há uma razão para isso. Se a
história do pensamento pudesse permanecer como o lugar das continuidades
ininterruptas, se ela unisse, continuamente, encadeamentos que nenhuma análise poderia
desfazer sem abstracção, se ela tramasse, em torno do que os homens dizem e
fazem, obscuras sínteses que a isso se antecipam, o preparam e o conduzem,
indefinidamente, para o seu futuro, ela seria, para a soberania da consciência,
um abrigo privilegiado. A história contínua é o correlato indispensável à função
fundadora do sujeito: a garantia de que tudo que lhe escapou poderá ser
devolvido; a certeza de que o tempo nada dispersará sem reconstituí-lo numa
unidade recomposta; a promessa de que o sujeito poderá, um dia, sob a forma da consciência
histórica, se apropriar, novamente, de todas essas coisas mantidas a distância
pela diferença, restaurar o seu domínio sobre elas e encontrar o que se pode
chamar sua morada. Fazer da análise histórica o discurso do contínuo e fazer da
consciência humana o sujeito originário de todo o devir e de toda prática são
as duas faces de um mesmo sistema de pensamento. O tempo é aí concebido em
termos de totalização, onde as revoluções jamais passam de tomadas de
consciência.
Sob formas diferentes, esse tema
representou um papel constante desde o século XIX: proteger, contra todas as descentralizações,
a soberania do sujeito e as figuras gémeas da antropologia e do humanismo.
Contra a descentralização operada por Marx, pela análise histórica das relações
de produção, das determinações económicas e da luta de classes, ele deu lugar,
no final do século XIX, à procura de uma história global em que todas as
diferenças de uma sociedade poderiam ser conduzidas a uma forma única, à
organização de uma visão do mundo, ao estabelecimento de um sistema de valores,
a um tipo coerente de civilização. À descentralização operada pela genealogia nietzschiana,
o tema opôs a busca de um fundamento originário que fizesse da racionalidade o telos da humanidade e que
prendesse a história do pensamento à salvaguarda dessa racionalidade, à
manutenção dessa teleologia e à volta, sempre necessária, a este fundamento.
Enfim, mais recentemente, quando as pesquisas da psicanálise, da linguística, da
etnologia, descentraram o sujeito em relação às leis do seu desejo, às formas
da sua linguagem, às regras da sua acção, ou aos jogos dos seus discursos
míticos ou fabulosos, quando ficou claro que o próprio homem, interrogado sobre
o que era, não podia explicar a sua sexualidade e o seu inconsciente, as formas
sistemáticas da sua língua ou a regularidade das suas ficções, novamente o tema
de uma continuidade da história foi reactivado: uma história que não seria
escansão, mas devir; que não seria jogo de relações, mas dinamismo interno; que
não seria sistema, mas árduo trabalho da liberdade; que não seria forma, mas
esforço incessante de uma consciência em se recompor e em tentar readquirir o
domínio de si própria, até as profundezas das suas condições; uma história que seria,
ao mesmo tempo, longa paciência ininterrupta e vivacidade de um movimento que
acabasse por romper todos os limites. Para tornar válido este tema que opõe à imobilidade
das estruturas, ao seu sistema fechado, à sua necessária sincronia, a abertura
viva da história, é preciso, evidentemente, contestar nas próprias análises
históricas o uso da descontinuidade, a definição dos níveis e dos limites, a
descrição das séries específicas, a revelação de todo o jogo das diferenças.
Somos, então, levados à antropológica de Marx, a fazer dele um historiador das
totalidades e a reencontrar nele o propósito do humanismo; somos levados a
interpretar Nietzsche nos termos da filosofia transcendental e a rebaixar a sua
genealogia no plano de uma pesquisa do originário; finalmente, somos levados a
deixar de lado, como se jamais tivesse aflorado, todo este campo de problemas
metodológicos que a história nova propõe hoje. Pois se era tido como certo que
a questão das descontinuidades, dos sistemas e das transformações, das séries e
dos limiares, se colocava em todas as disciplinas históricas (e nas que dizem
respeito às ideias ou às ciências tanto quanto nas que dizem respeito à
economia e às sociedades), como se poderia opor, com qualquer aspecto de
legitimidade, o devir ao sistema, o movimento às regulações circulares, ou,
como se diz era uma irreflexão bem ligeira, a história à estrutura?» In
Michel Foucault, A Arqueologia do Saber, 1969, tradução Luiz Neves, Editora
Forense Universitária, Rio de Janeiro, 2008, ISBN 978-852-480-344-7.
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