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No regresso, começava a cheirar a compotas e a marmelada. Aproximava-se
o dia de mortos e o cerimonial ostensivo (a que se juntava alguma rivalidade)
de candelabros de prata e flores, no cemitério. Por último chegavam os
magustos, o fuminho das castanhas às esquinas, a festa dos estudantes no
primeiro de Dezembro. Depois o Natal voltava. Àqueles rituais, felizes,
misturavam-se uns laivos de tragédia, pouca: as lembranças da pneumónica, que
tinha morto alguns familiares, que não conhecera, e as da primeira guerra do
século, que mais a tocara, porque logo no liceu tinha tido um professor de
Francês, gaseado da guerra de 14. Mas essas tragédias, já passadas, anulavam-se
diante da heroicidade do Carvalho Araújo, com estátua na Avenida, e do Milhões'
tantos alemães matara!, que até o próprio Presidente da República-general tinha
de lhe fazer a continência, quando ele desfilava com o 13, o nosso regimento.
Também havia ecos da guerra de Espanha, já que alguns se tinham oferecido para
combater pela república. E estava tudo mais próximo, porque já havia rádio. [...]
E, além disso, havia o anjo da guarda, a quem se rezava todas as noites. Sentia-se
a salvo. E toda se concentrava na ida para o liceu e na liberdade que haveria
para lá da montanha azul, dum azul amassado com violetas.
Seguiu para a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (1944),
onde concluiu Histórico-Filosóficas. Integrada no grupo de renovação cristã Metanóia,
casa (1949) com o respectivo animador, Fernando Macedo Ferreira Costa (morre em
2006, com 78 anos), um cooperativista, e preso político, fundador do Instituto
António Sérgio (1976), de quem tem quatro filhas. Separam-se em 1968.
Pobre ingénua, tonta!, que ainda tinha festejado, na rua, o
fim da Segunda Guerra Mundial, já na faculdade, em Lisboa, mas não ainda
totalmente consciente do holocausto, da sua dimensão e profundidade, como se
aquela fosse a última e definitiva Guerra e trouxesse, de imediato, a sonhada
democracia. Era tão nova e estava tão cheia de esperança, como um balão de
menino acabado de encher! Novas amizades, o piano da Rosário, que a ajudava a estudar,
os concertos em S. Carlos, as exposições, o contacto com o cristianismo
renovado da Metanóia, que apagava os medos do inferno e do pecado e
trazia, como O Cristianismo e a Mensagem Evangélica de Joaquim Alves
Correia, a figura humaníssima de Cristo, que, desde o colégio, julgara só um martirzinho
e não o pregador de uma nova doutrina de amor e perdão e de uma nova concepção
de Deus, sem inimigos, e pai de misericórdia. Estava cheia de esperança. Havia
toda uma vida a viver: o casamento, viagens, o nascimento das filhas...
Estreia-se na Árvore. Folhas de Poesia (vol. II,
primeiro fascículo, 1953, último número, apreendido pela Censura) com dois curtos
fragmentos de Fevereiro de 1951 sob o título Comboio, que anunciam a
simbiose futura de crónica e ficção em moldura intimista. Três contos sobre as almas-mortas
transmontanas fazem a estreia em livro, com Província (1955). Professora
do então ensino preparatório, para que elabora antologias e sobre que reflecte
nos anos 70, citemos ainda, para melhor entender alusões veladas de A. J.
Saraiva:
O tempo, porém, corria inexorável com o seu cortejo de aflições
e perdas: a prisão política do marido, esperanças murchas e a emurchecer, perdas:
a morte do pai, mais tarde a da tia e a venda da casa, o corte das raízes. O
tempo da alegria tinha passado, com a separação de pessoas e bens, mais tarde o
divórcio, o seu corpo ainda enxuto, de lua amassada com azeitona, duas vezes
recusado. Começava uma solidão, feroz, de quase quarenta anos, que só as aulas
e vagas escritas, pouco vendáveis, tinham preenchido. E a tudo isso viera
juntar-se a morte da mãe e depois a da filha mais velha (pode-se enterrar uma
filha?) e aquela certeza de que o mundo não era liberdade , beleza e amor, mas
injustiça, guerra, fome, tortura, vozes prisioneiras e sufocadas por censuras
políticas, cada vez mais sujeitas a uma economia, Sem moral, numa paisagem a desagregar-se
em lixo e poluição.
Na metade dos anos 60 a que respeita esta correspondência,
sobressai a crítica e ensaísta, presente em quatro publicações principais: Gazeta
Musical e de Todas as Artes, Gazeta Literária, O Comércio do Porto, Seara Nova.
Vão em nota às cartas os respectivos trabalhos, com que se alarga, seja para
Saraiva, seja para Luísa Dacosta, bibliografia ainda por completar. In Ernesto
Rodrigues
Paris, 22 de Abril de 1961
Minha Amiga
A sua carta quase se cruzava com a minha. Com efeito, já li o
seu ensaio e ia escrever-lhe sobre ele. Entretanto, tinha recebido as Searas
enviadas pelo Fernando; e recebi também as revistas que me enviou. O seu Burguesismo
Literário dá uma útil perspectiva de conjunto sobre a evolução dos valores
burgueses na nossa literatura e tem várias observações penetrantes». In
António José Saraiva e Luísa Dacosta, Correspondência, edição de Ernesto
Rodrigues, Gradiva, Lisboa, 2011, ISBN 978-989-616-455-3.
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