sábado, 13 de outubro de 2018

Memorial do Convento. José Saramago. «Andando e conversando, chegaram à estrebaria de um alquilador, na porta do Corpo Santo. O padre alugou uma mula, subiu para o albardão»


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«(…) Já não se sentou o padre Bartolomeu Lourenço, devagar aproximou-se da beira do rio, com Baltasar atrás, e ali, estando a um lado uma barca a descarregar palha em grandes panais que os mariolas transportavam às costas correndo equilibrados sobre a prancha, e a outro lado chegando-se duas escravas pretas a despejar para a água os calhandros de seus amos, o mijo e a mer…do dia ou da semana, entre o natural cheiro da palha e o cheiro natural do excremento, disse o padre, Tenho sido a risada da corte e dos poetas, um deles, Tomás Pinto Brandão, chamou ao meu invento coisa de vento que se há-de acabar cedo, se não fosse a protecção de el-rei não sei o que seria de mim, mas el-rei acreditou na minha máquina e tem consentido que, na quinta do duque de Aveiro, a S. Sebastião da Pedreira, eu faça os meus experimentos, enfim já me deixam respirar um pouco os maldizentes, que chegaram ao ponto de desejar que eu partisse as pernas quando me lançasse do castelo, sendo certo que nunca eu tal coisa prometera, e que a minha arte tinha mais que ver com a jurisdição do Santo Ofício (maldito) que com a geometria, padre Bartolomeu Lourenço, eu destas coisas não entendo, fui homem do campo, soldado deixei de ser, e não creio que alguém possa voar sem lhe terem nascido asas, quem o contrário disser, entende tanto disso como de lagares de azeite, Esse gancho que tens no braço não o inventaste tu, foi preciso que alguém tivesse a necessidade e a ideia, que sem aquela esta não ocorre, juntasse o couro e o ferro, e também estes navios que vês no rio, houve um tempo em que não tiveram velas, e outro tempo foi o da invenção dos remos, outro o do leme, e, assim como o homem, bicho da terra, se fez marinheiro por necessidade, por necessidade se fará voador, Quem põe velas num barco está na água e na água fica, voar é sair da terra para o ar, onde não há chão que nos ampare os pés, Faremos como as aves, que tanto estão no céu como pousam na terra, Então foi por querer voar que conheceu a mãe de Blimunda, por ser de artes subtis, Ouvi dizer que ela tinha visões de ver pessoas voando com asas de pano, é certo que visões não falta por aí quem diga tê-las, mas havia tal verosimilhança no que me contavam, que discretamente a fui visitar um dia, e depois ganhei-lhe amizade, E chegou a saber o que queria, Não, não cheguei, compreendi que o saber dela, se realmente o tinha, era outro saber, e que eu deveria perseverar contra a minha própria ignorância, sem ajudas, prouvera não me engane, Parece-me que estão na verdade aqueles que disseram que essa arte de voar se entendia mais com o Santo Ofício (maldito) que com a geometria, se eu estivesse no vosso caso dobraria de cautelas, olhai que cárcere, degredo e fogueira costumam ser a paga desses excessos, mas disto sabe um padre mais do que um soldado, Tenho cuidado e não me faltam protecções, Lá virá o dia.
Tornaram sobre os passos, voltaram aos Remolares. Sete-Sóis fez menção de falar, retraiu-se, o padre deu pela hesitação, Queres-me dizer alguma coisa, Queria saber, padre Bartolomeu Lourenço, porque é que Blimunda sempre come pão antes de abrir os olhos pela manhã, Tens dormido com ela, Vivo lá, Repara que estão em pecado de concubinato, melhor seria casarem-se, Ela não quer, eu não sei se quereria, se um dia destes volto para a minha terra e ela prefere ficar em Lisboa, para quê casar, mas o que eu tinha perguntado, Porque come Blimunda pão antes de abrir os olhos de manhã, Sim, Se o vieres a saber um dia, será por ela, por mim não, Mas sabe a razão, Sei, E não ma diz, Só te. direi que se trata de um grande mistério, voar é uma simples coisa comparando com Blimunda.
Andando e conversando, chegaram à estrebaria de um alquilador, na porta do Corpo Santo. O padre alugou uma mula, subiu para o albardão, Vou a S. Sebastião da Pedreira ver a minha máquina, queres tu vir comigo, a mula pode com os dois, Irei, mas a pé, que é o caminho da infantaria, És um homem natural, nem cascos de mula nem asas de passarola, É assim que se chama a sua máquina, perguntou Baltasar, e o padre respondeu, Assim lhe têm chamado por desprezo. Subiram a S. Roque, e depois, contornando o alto morro das Taipas, desceram pela Praça da Alegria até Valverde. Sete-Sóis acompanhava sem dificuldade a andadura da mula, só em terreno plano se deixava atrasar um pouco, para logo recuperar na próxima encosta, tanto a descer como a subir. Apesar de não ter caído pinga de água desde Abril, sendo já passados quatro meses, estavam viçosos todos os campos para cima de Valverde, por via das muitas fontes perenes, encaminhados os mananciais ao cultivo das hortaliças, que ali eram abundantes, às portas da cidade. Passado o convento de Santa Marta e adiante o de Santa Joana Princesa, alargavam-se terras de olival, mas mesmo aí se implantavam as culturas hortenses, e se por lá não rebentavam as fontes naturais, supriam a falta as cegonhas de tirar água, erguendo os seus pescoços compridos, e circulavam burros à nora, de olhos tapados para terem a ilusão de caminhar a direito, não sabendo, como não sabiam os donos, que andando realmente a direito também acabariam por vir parar ao mesmo lugar, porque o mundo. é ele uma nora e são os homens que, andando em cima dele, o puxam e fazem andar. Mesmo já cá não estando Sebastiana Maria de Jesus para ajudar com as suas revelações, é fácil ver que, faltando os homens, o mundo para». In José Saramago, Memorial do Convento, Editorial Caminho, O Campo da Palavra, 27ª Edição, 1998, ISBN 972-21-0026-2.

Cortesia de Caminho/JDACT