«(…) Piankhi imobilizou-se em frente de um enorme leão de
calcário, cujos traços eram de uma extrema delicadeza. Na Núbia, Amon gostava
de tomar a forma dessa fera, porque o nome do leão em hieróglifos era mai,
aquele que vê. E nem o homem que se escondia no canto de um
compartimento escuro escapava ao olhar do Criador. Na base da estátua, uma
inscrição: O deus que reconhece o seu fiel, Aquele cuja aproximação é doce e
vem ao encontro do que a implorou. Por cima da fera de pedra, um
baixo-relevo evocava a oferenda do arco. O senhor divino abrira o caminho: era
necessário continuar a lutar.
O fim da tarde era de uma inefável doçura. Era o momento em
que os pastores tocavam flauta, em que os escribas poisavam os pincéis, em que
as donas de casa concediam finalmente repouso a si próprias, contemplando o sol
poente. A faina terminava, as fadigas do dia eram esquecidas durante esses
instantes mágicos que os velhos sábios consideravam a expressão da plenitude. Quando
Piankhi penetrou no quarto da sua
esposa principal, mergulhado na obscuridade, julgou a princípio que ela estava
ausente; depois viu-a na varanda, absorvida pelo espectáculo único e sempre
renovado que lhe ofereciam os últimos clarões do astro da vida. Com trinta e
cinco anos, Abilé estava no auge do seu esplendor. Alta, esguia, de rosto
ovalado semelhante ao de Nefertiti e pele acobreada, tinha um porte real.
Piankhi afastara as pretendentes oficiais para desposar aquela filha de um
sacerdote sem fortuna mas especialista dos rituais egípcios e que soubera
transmitir-lhe os seus conhecimentos. O tempo não tinha qualquer efeito sobre a
sumptuosa núbia. Pelo contrário, a maturidade embelezara-a e aperfeiçoara-a e
as mais belas sedutoras de Napata tinham renunciado a desafiá-la. Como única
indumentária, Abilé envergava uma longa camisa de linho transparente. Soltara
os cabelos perfumados e deixava que os últimos fulgores do poente dançassem
sobre o seu corpo de deusa. Quando a noite se estendeu sobre o reino de
Piankhi, voltou-se para vestir mais qualquer coisa. Foi então que o viu. Estás
aqui há muito tempo? Não ousei interromper a tua meditação. Tomou-a
apaixonadamente nos braços, como se tivessem estado separados há longos meses. Mesmo
que estivesse furiosa com ele, Abilé não teria conseguido resistir à sua magia.
Sentir-se protegida, amada por aquele rei simultaneamente forte e sensível,
enchia-a de uma alegria que as palavras não eram capazes de descrever. A caçada
foi boa? A corte não terá falta de carne... Mas isso não a impedirá de
murmurar. Tens receio dela? Quem negligenciar uma conspiração não merecerá
reinar. Abilé poisou a face no ombro de Piankhi. Uma conspiração... É assim tão
grave? Estará a rainha do Egipto mal informada? Julgava que esses rumores não
tinham fundamento. Não é a opinião de Cabeça-fria. Cabeça-fria... Dás sempre
ouvidos aos conselhos desse escriba? Censuras-me por isso? Abilé afastou-se de
Piankhi.
Tens razão, meu amor. Cabeça-fria não te trairá. Uma das tuas
esposas secundárias, alguns sacerdotes invejosos, uma dezena de cortesãos
estúpidos e um ministro demasiado ambicioso... Como levá-los a sério, quando
reinas há vinte anos e o mais humilde dos teus súbditos se deixaria matar por
ti! A
vaidade é um veneno incurável, Abilé. Conduz à pior das mortes, a da
consciência. O que tencionas fazer? Implorei a Amon que iluminasse o meu caminho e ele respondeu-me». In Christian
Jacq, O Faraó Negro, 1997, Bertrand Editora, 1998, ISBN 978-972-251-049-3.
Cortesia de BertrandE/JDACT