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«(…) Eis como era a situação quando eu, já noviço
beneditino no mosteiro de Melk, fui retirado da tranquilidade do claustro por
meu pai, que se batia no séquito de Luís, não como o último dos seus barões, e
que considerou avisado levar-me consigo para que conhecesse as maravilhas de
Itália e estivesse presente quando o imperador fosse coroado em Roma. Mas o assédio de Pisa absorveu-o nos
cuidados militares. Eu disso tirei vantagem, vagueando, um pouco por ócio e um
pouco por desejo de aprender, pelas cidades da Toscana, mas esta vida livre e
sem regra não se adequava, pensaram os meus pais, a um adolescente votado à
vida contemplativa. E a conselho de Marsílio, que começara a gostar de mim,
decidiram pôr-me junto de um douto franciscano, frade Guilherme Baskerville,
que ia iniciar uma missão que o levaria a visitar cidades famosas e abadias antiquíssimas.
Assim me tornei o seu escrivão e discípulo ao mesmo tempo, e não vim a
arrepender-me, porque fui com ele testemunha de acontecimentos dignos de serem
confiados, como agora estou fazendo, à memória daqueles que hão-de vir.
Eu não sabia então o que procurava o frade Guilherme, e,
para dizer a verdade, ainda hoje não o sei, e presumo que nem sequer ele o
soubesse, movido como era pelo único desejo da verdade e pela suspeita, que
sempre lhe vi nutrir, de que a verdade não era aquela que lhe aparecia no
momento presente. E talvez naqueles anos ele estivesse desviado dos seus
estudos predilectos por incumbências do século. A missão de que Guilherme
estava encarregado ficou para mim incógnita ao longo de toda a viagem, ou
melhor, ele não me falou dela. Foi sobretudo ouvindo pedaços de conversas que
ele teve com os abades dos mosteiros em que nos íamos detendo que pude fazer
uma ideia da natureza da sua tarefa. Mas não o compreendi plenamente enquanto
não chegamos à nossa meta, como direi
depois. Dirigíamo-nos para norte, mas a nossa viagem não prosseguiu em linha recta,
e detivemo-nos em várias abadias. Assim, aconteceu que viramos para ocidente,
enquanto a nossa meta última ficava a oriente, quase seguindo a linha de
montanhas que vai de Pisa na direcção da estrada de Santiago, parando numa
terra que os terríveis acontecimentos que depois aí sucederam me desaconselham
de identificar melhor, mas cujos senhores eram fiéis ao império e onde os
abades da nossa ordem se opunham de comum acordo ao papa herético e corrupto. A
viagem durou duas semanas entre vicissitudes várias, e durante esse tempo tive
ocasião de conhecer (nunca o bastante, como estou convencido) o meu novo
mestre.
Nas páginas que se seguem não quero abandonar-me a
descrições de pessoas, a não ser quando a expressão de um rosto ou um gesto
apareçam como sinais de muda mas eloquente linguagem, porque, como diz Boécio,
nada é mais fugaz do que a forma exterior, que fenece e muda como as flores do
campo ao surgir o Outono, e que sentido teria hoje dizer do abade Abbone que
tinha o olhar severo e as faces pálidas, quando agora ele e os que o rodeavam
são pó e do pó o seu corpo tem já o cinzento mortífero (só o espírito, queira
Deus, resplandecendo de uma luz que jamais se extinguirá)? Mas de Guilherme
quero falar, e uma vez por todas, porque também me impressionaram as suas
singulares feições, e é próprio dos jovens ligar-se a um homem mais velho e
mais sábio não só pelo fascínio da
palavra e pela agudeza da mente mas também pela forma superficial do corpo, que
se torna queridíssima, como acontece com a figura de um pai, a quem se estudam
os gestos e as cóleras e se espia o sorriso, sem a menor sombra de luxúria a
inquinar esta forma (talvez a única verdadeiramente pura) de amor corpóreo.
Os homens de outrora eram altos e belos (agora são crianças
e anões), mas este facto é apenas um dos muitos que testemunham a desgraça de
um mundo que envelhece. A juventude não quer aprender mais nada, a ciência está
em decadência, o mundo inteiro caminha de cabeça para baixo, cegos conduzem
outros cegos e fazem-nos precipitar nos abismos, os pássaros lançam-se antes de
começarem a voar, o burro toca lira, os bois dançam, Maria já não ama a vida
contemplativa e Marta já não ama a vida activa, Lia é estéril, Raquel tem olhos
sensuais, Catão frequenta os lupanares, Lucrécio torna-se mulher. Tudo está
desviado do seu próprio caminho. Sejam dadas graças a Deus que eu, naquele
tempo, adquiri do meu mestre o desejo de aprender e o sentido da recta via, que
se conserva mesmo quando o caminho é tortuoso». In Umberto Eco, O Nome da Rosa,
1980, Edições Gradiva, 2011, ISBN 978-989-616-454-6.
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