segunda-feira, 8 de outubro de 2018

O Nome da Rosa. Umberto Eco. «A juventude não quer aprender mais nada, a ciência está em decadência, o mundo inteiro caminha de cabeça para baixo, cegos conduzem outros cegos e fazem-nos precipitar nos abismos…»

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«(…) Eis como era a situação quando eu, já noviço beneditino no mosteiro de Melk, fui retirado da tranquilidade do claustro por meu pai, que se batia no séquito de Luís, não como o último dos seus barões, e que considerou avisado levar-me consigo para que conhecesse as maravilhas de Itália e estivesse presente quando o imperador fosse coroado em Roma. Mas o assédio de Pisa absorveu-o nos cuidados militares. Eu disso tirei vantagem, vagueando, um pouco por ócio e um pouco por desejo de aprender, pelas cidades da Toscana, mas esta vida livre e sem regra não se adequava, pensaram os meus pais, a um adolescente votado à vida contemplativa. E a conselho de Marsílio, que começara a gostar de mim, decidiram pôr-me junto de um douto franciscano, frade Guilherme Baskerville, que ia iniciar uma missão que o levaria a visitar cidades famosas e abadias antiquíssimas. Assim me tornei o seu escrivão e discípulo ao mesmo tempo, e não vim a arrepender-me, porque fui com ele testemunha de acontecimentos dignos de serem confiados, como agora estou fazendo, à memória daqueles que hão-de vir.
Eu não sabia então o que procurava o frade Guilherme, e, para dizer a verdade, ainda hoje não o sei, e presumo que nem sequer ele o soubesse, movido como era pelo único desejo da verdade e pela suspeita, que sempre lhe vi nutrir, de que a verdade não era aquela que lhe aparecia no momento presente. E talvez naqueles anos ele estivesse desviado dos seus estudos predilectos por incumbências do século. A missão de que Guilherme estava encarregado ficou para mim incógnita ao longo de toda a viagem, ou melhor, ele não me falou dela. Foi sobretudo ouvindo pedaços de conversas que ele teve com os abades dos mosteiros em que nos íamos detendo que pude fazer uma ideia da natureza da sua tarefa. Mas não o compreendi plenamente enquanto não chegamos à nossa meta, como direi depois. Dirigíamo-nos para norte, mas a nossa viagem não prosseguiu em linha recta, e detivemo-nos em várias abadias. Assim, aconteceu que viramos para ocidente, enquanto a nossa meta última ficava a oriente, quase seguindo a linha de montanhas que vai de Pisa na direcção da estrada de Santiago, parando numa terra que os terríveis acontecimentos que depois aí sucederam me desaconselham de identificar melhor, mas cujos senhores eram fiéis ao império e onde os abades da nossa ordem se opunham de comum acordo ao papa herético e corrupto. A viagem durou duas semanas entre vicissitudes várias, e durante esse tempo tive ocasião de conhecer (nunca o bastante, como estou convencido) o meu novo mestre.
Nas páginas que se seguem não quero abandonar-me a descrições de pessoas, a não ser quando a expressão de um rosto ou um gesto apareçam como sinais de muda mas eloquente linguagem, porque, como diz Boécio, nada é mais fugaz do que a forma exterior, que fenece e muda como as flores do campo ao surgir o Outono, e que sentido teria hoje dizer do abade Abbone que tinha o olhar severo e as faces pálidas, quando agora ele e os que o rodeavam são pó e do pó o seu corpo tem já o cinzento mortífero (só o espírito, queira Deus, resplandecendo de uma luz que jamais se extinguirá)? Mas de Guilherme quero falar, e uma vez por todas, porque também me impressionaram as suas singulares feições, e é próprio dos jovens ligar-se a um homem mais velho e mais sábio não só pelo fascínio da palavra e pela agudeza da mente mas também pela forma superficial do corpo, que se torna queridíssima, como acontece com a figura de um pai, a quem se estudam os gestos e as cóleras e se espia o sorriso, sem a menor sombra de luxúria a inquinar esta forma (talvez a única verdadeiramente pura) de amor corpóreo.
Os homens de outrora eram altos e belos (agora são crianças e anões), mas este facto é apenas um dos muitos que testemunham a desgraça de um mundo que envelhece. A juventude não quer aprender mais nada, a ciência está em decadência, o mundo inteiro caminha de cabeça para baixo, cegos conduzem outros cegos e fazem-nos precipitar nos abismos, os pássaros lançam-se antes de começarem a voar, o burro toca lira, os bois dançam, Maria já não ama a vida contemplativa e Marta já não ama a vida activa, Lia é estéril, Raquel tem olhos sensuais, Catão frequenta os lupanares, Lucrécio torna-se mulher. Tudo está desviado do seu próprio caminho. Sejam dadas graças a Deus que eu, naquele tempo, adquiri do meu mestre o desejo de aprender e o sentido da recta via, que se conserva mesmo quando o caminho é tortuoso». In Umberto Eco, O Nome da Rosa, 1980, Edições Gradiva, 2011, ISBN 978-989-616-454-6.

Cortesia de EGradiva/JDACT