Keter
«(…) Temos diversos e curiosos Relógios, e outros que desenvolvem
Movimentos Alternativos... E temos também Casas de Ludibriar os Sentidos, com
as quais realizamos toda espécie de Manipulações. Falsas Aparições, Ilusões e
imposturas... Tais são, meu filho, as riquezas da Casa de Salomão. Tinha
readquirido o controle dos nervos e da imaginação. Devia jogar com ironia, como
havia feito poucos dias antes, sem me deixar comprometer. Estava num museu e
precisava ser dramaticamente astuto e lúcido. Olhei confiante para os aviões
que pairavam sobre mim: poderia embarafustar-me na carlinga de um biplano e
esperar a noite como se estivesse sobrevoando a Mancha, pregustando a Legião de
Honra. Os nomes dos automóveis ao meu redor soavam-me afectuosamente
nostálgicos... Hispano Suíça 1932, belo e acolhedor. Mas era de evitar-se
porque estava próximo demais da caixa, conquanto pudesse enganar o bilheteiro
se me apresentasse knickerbocker. Cedendo passagem a uma senhora de
tailleur creme, com longa echarpe em volta do pescoço filiforme e um
chapeuzinho à cloche cobrindo os seus cabelos de corte à la garçonne. O Citroën
C 64 de 1931 era exposto apenas em corte vertical, belo modelo escolástico mas
esconderijo irrisório. Nem mencionar a máquina a vapor de Cugnot, enorme, só
caldeira, ou marmita que seja. Era preciso observar à direita, onde estavam
junto à parede os velocípedes de grandes rodas florais, as draisiennes de
quadro chato, as patinetes, que evocavam cavalheiros de cartola a espernear
pelo Bois de Boulogne, como verdadeiros arautos do progresso.
Em frente aos velocípedes, havia boas carrocerias, apetitosos
receptáculos. Talvez não a Panhard Dynavia de 1945, transparente demais e
exígua no seu torneado aerodinâmico, mas era de se considerar a alta Peugeot
1906, uma mansarda, uma alcova. Uma vez lá dentro, afundado nos assentos de
couro, ninguém poderia suspeitar minha presença. O difícil era entrar nela,
pois um dos guardiães estava sentado a um banco bem à sua frente, de costas
voltadas para as bicicletas. Subiria no estribo, um tanto empachado pelo sobretudo
de gola de pelúcia, enquanto ele, de botas de cano longo, boné de viseira à
mão, me abriria obsequioso a portinhola...
Concentrei-me por um átimo na Obéissante, 1873, o primeiro veículo
francês de tração mecânica, para doze passageiros. Se a Peugeot era um
apartamento, este era um palácio. Mas longe de pensar que se poderia entrar
nele sem chamar a atenção de todo mundo. Como é difícil esconder-se quando os
esconderijos são os Quadros de uma exposição. Voltei a atravessar a sala: a
estátua da Liberdade erguia-se, éclairant le monde, sobre uma peanha de
quase dois metros, concebida como uma proa com remate afilado. Ocultava em seu
interior uma espécie de guarita, dentro da qual se podia ver em frente, através
de uma vigia de proa, um diorama da baia de New York. Bom ponto de observação
para quando chegasse a meia-noite, pois que se poderia dominar na escuridão o
coro à esquerda e a nave à direita, a rectaguarda protegida por uma grande
estátua de pedra de Gramme, com a face voltada para os outros corredores,
colocada como estava numa espécie de transepto. Mas em plena luz podia-se
perceber perfeitamente se a guarita estava ou não vazia, e qualquer guardião
normal decerto daria uma olhadela ali, por desencargo de consciência, depois de
evacuar os visitantes.
Não dispunha de muito tempo; às cinco e meia iriam fechar. Apressei-me em
recorrer o ambulacro. Nenhum dos motores poderia prover esconderijo. Tampouco,
à direita, os grandes aparelhos de armação de navios, relíquias de algum
Lusitânia engolido pelas águas, nem o imenso motor a gás de Lenoir, com sua
variedade de rodas dentadas. Não, ainda mais agora, que a luz amortecia e
penetrava de modo aquóreo pelos cinzentos vitrais e eu me sentia novamente
presa do medo de esconder-me entre esses monstros e ter de enfrentá-los logo
mais no escuro, à luz de minha lanterna eléctrica, renascidos nas trevas, a
ansiar por uma grave respiração telúrica, ossos e vísceras já sem pele,
estralejantes e fétidos de uma baba oleosa. Naquela mostra, que eu começava a
achar imunda, de genitais Diesel e vaginas em turbina, gargantas inorgânicas
que outrora arrotavam, e que talvez viessem esta noite novamente a arrotar, chamas,
vapores, sibilos, ou então voltear indolentes como pandorgas, zunindo como
cigarras, entre aquelas manifestações esqueléticas de uma pura funcionalidade
abstrata, autómatos capazes de descascar, segar, remover, partir, cortar em
fatias, acelerar, ir de encontro, engolir estilhaços, soluçar em cilindros,
desarticular-se como marionetes sinistras, fazer tambores rodar, converter
frequências, transformar energias, rodar volantes, como teria podido
sobreviver? Haveriam de enfrentar-me, instigados pelos Senhores do Mundo, que
as utilizaram para falar dos erros da criação, dispositivos inúteis, ídolos dos
patrões do baixo universo, como poderia resistir sem vacilar?
Eu devia ir-me embora, ir embora, era tudo uma loucura, estava caindo no
jogo que fizera Jacopo Belbo perder o juízo, também eu, o homem incrédulo... Não
sei se fiz bem em permanecer ali aquela noite. Se não, hoje saberia apenas o
início, mas não o fim da história. Ou melhor, não estaria aqui, isolado nesta
colina, enquanto os cães ladram ao longe, lá em baixo no vale, a perguntar-me
se meu fim havia deveras chegado ou se ainda estava por vir». In Umberto
Eco, O Pêndulo de Foucault, 1988, tradução de José Barreiros, Sicidea (Difel),
2008, ISBN 978-846-125-726-3.
Cortesia de Sicidea/Difel/JDACT