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«(…) Pietro dava-se conta de que agora conhecia uma grande
quantidade de pigmentos, óleos, tintas e ferramentas cuja existência antes
ignorava completamente; reconhecia que podia falar de igual para igual com o seu
mestre sobre diferentes materiais e técnicas e sobre os artefactos mais
extraordinários, mas também se perguntava de que servia toda aquela erudição se
tudo aquilo lhe estava vedado, a não ser para limpar, organizar e classificar.
Mas Francesco Monterga sabia que
quanto mais retardasse os ímpetos de seu discípulo, tanto maior seria a força
com que libertaria o seu talento contido quando chegasse o momento. E o grande
dia chegou quando Pietro menos esperava. Numa manhã qualquer, o mestre chamou o
seu pequeno aprendiz. Diante dele estavam uma pequena tábua, três lápis, cinco
formões bem afiados e um frasco de tinta negra. Como uma homenagem ao seu
mestre, Francesco Monterga encomendou a Pietro della Chiesa o seu primeiro
exercício. No coro da capela do hospital de São Egídio, havia um pequeno
retábulo de madeira, obra de Cosimo, conhecido como O triunfo da luz. O mestre
florentino deu ao seu discípulo a tarefa de copiar a obra e gravá-la na madeira
com os formões resplandecentes. A gravura era a mais completa e a mais complexa
das técnicas; combinava o desenho, o entalhe e a pintura. Sem ter as três
dimensões da escultura, a figura devia imitar a mesma profundidade; sem contar
com a vantagem da cor, devia apresentar a impressão das tonalidades somente com
o uso da tinta preta e o fundo branco do papel. Os enormes olhos negros de
Pietro quase saltaram das órbitas quando ouviu a encomenda do mestre. Um
sorriso involuntário instalou-se no seu rosto, e o coração lutava para sair do
peito. Além disso, aquela era uma demonstração de confiança, já que o menor
descuido no uso dos afiados formões podia causar um terrível acidente. Sem
dúvida, era um prémio muito maior do que podia esperar por sua paciência. Em
poucos dias, o trabalho estava terminado. Francesco Monterga estava
maravilhado. O resultado foi surpreendente: a gravura não só fazia justiça ao
original, como podia-se dizer que, somente com o uso da tinta negra, emanava uma
profundidade e uma subtileza ainda superiores. Mas nem Pietro, nem Francesco Monterga
imaginavam que aquelas quatro tábuas mudariam o curso das suas vidas.
Junto à
fossa rectangular que com cada nova porção de terra ia devorando os restos
corrompidos daquele que até pouco tempo apresentava o aspecto de um efebo,
Francesco Monterga não podia evitar uma caótica sucessão de recordações. Da
mesma forma que a evocação de um filho remete à lembrança do pai, Francesco
Monterga pensava agora no seu próprio mestre, Cosimo Verona. Com ele havia
aprendido tudo o que sabia e dele havia herdado, também, tudo o que ignorava.
E, de facto, Francesco Monterga parecia muito mais obcecado por todos os
mistérios que não conseguia desvelar do que pelo punhado de certezas de que era
dono. Mas o que mais o atormentava, o que nunca podia se perdoar era a vergonha
de ter permitido que o seu mestre morresse na prisão, onde fora parar por causa
das dívidas que tinha. Preso, velho, cego e na mais absoluta indigência, nenhum
discípulo, incluindo o próprio Monterga, teve a generosidade de pagar aos seus
credores e tirá-lo da prisão. Mas o velho mestre Da Verona, longe de
converter-se num misantropo corroído pelo ressentimento, conservou, até ao dia
da sua morte, a mesma filantropia que sempre o guiou. Teve até a imensa
generosidade de deixar nas mãos do, na época, jovem Francesco Monterga o seu
mais valioso tesouro: o tratado Diversarum Artium Schedula. Sem dúvida, aquele manuscrito do século IX excedia com
vantagens o montante de sua dívida, mas Cosimo da Verona nunca ia permitir que
acabasse nas mãos miseráveis de um ganancioso. Antes disso, preferia morrer na
sua cela. E assim o fez. Segundo Cosimo Verona
havia revelado a Francesco Monterga no dia em que lhe confiara o tratado,
aquele manuscrito continha o segredo mais procurado pelos pintores de todos os
tempos, aquele mistério pelo qual qualquer artista daria a sua mão direita ou,
até, o dom mais valioso para um pintor: a sua visão. Nesse manuscrito, estava o
valioso Secretus
coloris in status purus, o mítico segredo das cores em estado
puro. No entanto, quando Francesco Monterga leu com avidez o tratado e releu
várias vezes o último capítulo, Coloribus et Artibus,
longe de encontrar, como esperava, a mais preciosa das revelações, deparou-se
com uma inesperada surpresa. Em lugar de uma explicação clara e sucinta desse
segredo, não havia nada mais que um longo fragmento de Os livros da ordem, de
Santo Agostinho, em cujas linhas se intercalava uma série de números sem
arranjo aparente e sem nenhuma ordem. Durante mais de quinze anos, Francesco
Monterga tentou decifrar o enigma sem conseguir elucidar sentido algum. O
mestre guardava o manuscrito a sete chaves. O único a quem revelou a existência
do tratado foi Pietro della Chiesa.
O seu discípulo havia aprendido o ofício rapidamente. O precoce
talento que aquela distante primeira gravura revelava era uma pálida antecipação do seu
potencial. Em doze anos de estudo junto ao seu mestre, segundo todas as
opiniões, havia superado Taddeo Gaddi, o mais conhecido aluno de Giotto, que
permaneceu vinte e quatro anos com o célebre pintor». In Federico Andahazi, O Segredo dos
Flamengos, L&PM Pocket, 2002, ISBN 978-852-541-357-4.
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