terça-feira, 13 de novembro de 2018

A Intriga de Compostela. Assim Nasceu Portugal. Domingos Amaral. «A melhor estratégia era avançar no Sul, lutando contra os mouros, ajudando assim a investida paralela do imperador na Andaluzia e caindo nas boas graças do papa»

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A intriga de Compostela 1140-1142
Guimarães. Outubro de 1140
«(…) Perto do altar estavam também os restantes quatro rapazes da minha cunhada, com Pêro Pais à cabeça, bem como os dois rebentos com que Maria me brindara; e ainda a filha e os filhos de Teresa de Celanova e meu pai, Egas Moniz. No final da longa celebração, o barulho que o bando de crianças fazia à porta da capela era intenso e, por isso, Afonso Henriques as convocou, para distribuir guloseimas e bolos, afastando-as dos adultos. Cercado de meninos e meninas, já com três descendentes, apaixonado por Chamoa, orgulhoso dos seus novos castelos no Sul, como Penela ou Pombal, Afonso Henriques parecia feliz, mas eu sabia que ainda lhe faltava o reconhecimento final a que aspirava. Por mais que o arcebispo de Braga, João Peculiar, escrevesse ao papa Inocêncio II propagandeando a estrondosa vitória obtida em Ourique sobre os muçulmanos, o pontífice não aceitara reconhecer o príncipe como rei, tal como acontecia com Afonso VII.
Seja como for, os últimos tempos haviam sido pacíficos e só quando Gomes Nunes chegou atrasado para o baptizado de mais um neto pressenti o fim do remanso. O meu sogro vinha afogueado, mas solitário, pois Elvira Peres Trava recusara-se a comparecer, alegando que a família Trava jamais iria pacificar as suas querelas com o Condado Portucalense. Contudo, bem mais preocupantes do que os amuos de minha sogra eram as notícias que o seu marido nos trazia: Virgem Santíssima, o Trava quer a guerra!, contou Gomes Nunes. E Afonso VII quer banir-me e tirar-me Toronho! Ao ouvir tais palavras, Afonso Henriques exclamou: esses territórios são meus, não de meu primo! O velho sonho de dominar a Baixa Galiza, que nascera com o conde Henrique e com sua mãe, voltava a contagiá-lo e, surpreendentemente, também à sua amada. Agora que já dera um menino ao príncipe de Portugal, Chamoa Gomes aspirava a mais. Sendo também uma Trava, tinha um pé na Galiza e outro em Portugal e podia reinar em ambos os territórios, ajudando de caminho o seu pai, Gomes Nunes, a permanecer na posse de Toronho. O imperador não nos pode tirar Tui!, protestou ela.
A seu lado, o embevecido príncipe de Portugal concordou, declarando que assim se fundiam dois desejos antigos: o dele, de reinar na Baixa Galiza, e o dela, de ser rainha desde Compostela até Leiria. Agradada, Chamoa saiu, pacificada, da sala do castelo, acompanhada pela minha Maria, por Teresa Celanova e pelo grupo de crianças. Porém, mal estas se deixaram de ouvir levantou-se uma voz opositora de tantos devaneios. Era Egas Moniz. Tendes ambição a mais! Meu pai assistira à longa guerra que consumia a Galiza, trespassada por conflitos sangrentos entre o arcebispo Gelmires, os Trava, dona Teresa e sua irmã, a louca rainha Urraca, mãe de Afonso VII. Reeditar tais desgraças afigurava-se intolerável para um pacificador nato, que abominava lutas entre cristãos e sempre defendera que o Sul era o nosso sublime desígnio. Conquistai antes Santarém e Lisboa, pois só assim o papa e o imperador vos farão rei!, afirmou Egas Moniz.
O atribulado dilema que atravessara a nossa última década persistia. Qual a prioridade portucalense? O Sul, a luta contra os mouros? Ou o Norte, a união com a Galiza? O pacto de Tui fora cristalino, a faixa galega a norte do rio Minho não pertencia a Afonso Henriques, mas o príncipe de Portugal moía cada vez mais a irritação de ter assinado tal compromisso num momento de fragilidade. Já meu pai, embora defendesse que Afonso Henriques tinha direito a reinar no Condado Portucalense e na Baixa Galiza, considerou que ele devia apresentar essas justas pretensões de forma pacífica, procurando a aprovação do primo. A melhor estratégia era avançar no Sul, lutando contra os mouros, ajudando assim a investida paralela do imperador na Andaluzia e caindo nas boas graças do papa. Além disso..., murmurou Egas Moniz, olhando para a porta por onde há pouco saíra Chamoa. Tendes de pensar numa esposa real!» In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, A Intriga de Compostela, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.

Cortesia da CasadasLetras/JDACT