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As
Princesas de Córdova. Silves, 1145
«(…) Sibilino, Ibn Qasi afirmou
que uma princesa não andava nua em frente de soldados, mas desta vez ela não lhe
replicou. Apenas sorriu, convencida de que a cidade onde nascera o obrigaria a
engolir aquele moralismo enervante. Porém, o sufi surpreendeu-a,
mostrando-lhe que possuía bons espiões. O vosso amigo Mem está preso em
Córdova. Ou fazeis o que eu mando, ou mato-o quando lá chegar!
Córdova, Janeiro de 1145
Ao passear pelos corredores do Azzahrat,
Abu Zhakaria teve a premonição de que os dias gloriosos de Ismar estavam a terminar.
Já nem os criados o respeitam...
Dois anos antes, ele e Fátima tinham-no
deixado nos píncaros do poder, mas no presente, mesmo depois da vitória obtida
em Soure, a autoridade de Ismar já era curta. O povo de Córdova não estimava
aquele príncipe e muitos na Andaluzia já recusavam o seu mando. Na opinião largamente
maioritária dos súbditos, Ismar fizera um acordo inaceitável com o imperador Afonso
VII e esse dramático momento marcara o início da sua lenta degradação. Dois meses
antes, Almeria e Granada haviam-lhe virado as costas, e mesmo os sevilhanos, normalmente
leais, tinham-se recusado a manter as tropas em Córdova, impondo a desmobilização
habitual do Inverno, o que nas circunstâncias equivalia a uma traição.
Ibn Qasi está a chegar...
Abu Zhakaria receava que o marido
de Zaida se apoderasse de Chamoa, de Mem e de Martinho de Soure, presos nas masmorras
do Azzahrat, o que o prejudicaria, pois os reféns portucalenses eram a única garantia
de que Afonso Henriques não atacaria Santarém.
Se
perco Chamoa, o rei de Portugal dá cabo de mim.
Foi isso que Zhakaria explicou a Ismar,
nos claustros do Azzahrat, tendo apenas Malik como testemunha. Para que pudesse
usá-la numa futura negociação com o rei de Portugal, tinha de levar Charnoa para
Hisn Abi Cherif, antes que fosse tarde! Temeis a minha derrota?, questionou-o o
príncipe. Abu Zhakaria recordou que as tropas de Ibn Qasi e Ibn Wasir eram mais
numerosas do que as de Córdova. Sem a ajuda de Sevilha, Granada ou Almeria, Ismar
podia ser derrotado. Zaida não me vai vencer!, ripostou este. O wali de Santarém
admirou-o em silêncio, impressionado com a transformação que notava nele. Os seus
olhos raiados de sangue eram um sinal claro de que dormia pouco, aflito com a situação
vulnerável em que se encontrava. Era já um príncipe perdido, mas não o
aceitava, continuava convencido da sua aura.
Onde estão as tropas que vos exigi?,
perguntou ele. Abu Zhakaria justificou-se: mantinha três mil soldados a defenderem
Santarém, pois temia uma investida vingativa de Afonso Henriques. Em Córdova,
permaneciam apenas os trezentos homens que trouxera. Chamoa e Mem são meus prisioneiros!,
insistiu Abu. Enervado, Ismar ameaçou-o: prometi-vos um vasto território no Oeste.
Parti hoje e destituo-vos do cargo de wali de Santarém! Receoso, Abu Zhakaria
tentou acalmá-lo. Não vou fugir! Vou levá-los para Hisn com a Fátima. Tenho de proteger
a minha mulher! E de defender Santarém. Porém, Ismar contestou-o: a princesa
Zaida jamais mataria a irmã, não era uma sanguinária! E Ibn Wasir estava do seu
lado, preparava-se para trair Ibn Qasi. Wasir é um falso e um frouxo!, lembrou
o desconfiado Abu Zhakaria. Tal como o governador de Sevilha!» In
Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras,
2017, ISBN 978-989-741-713-9.
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