sexta-feira, 30 de novembro de 2018

João II. Crónica Esquecida. Seomara Veiga Ferreira. «… Carlos, que até também era português, diziam seus amigos, no feitio temerário e na cor dos cabelos, da tez, na compleição... Afonso não aprendera»

jdact

A morte de Lancelot
«(…) Afonso protegeu o castelo e preparava-se para a batalha final. Formou três corpos com os seus homens: à esquerda estavam as tropas do arcebispo de Toledo, do duque de Guimarães e do conde de Vila Real, no centro, os homens chefiados pelo próprio Monarca; à direita, com a tropa mais adestrada, o Príncipe João. A batalha não foi ganha por ninguém, a não ser pela ala do Príncipe. Depois de uma renhida chacina de parte a parte, apenas o corpo de exército do Príncipe foi vencedor e desbaratou o inimigo. O rei Afonso deu ordem de recuo e, aterrorizado perante a extensão do que julgava ser o fim das ilusões e do conflito militar, fugiu para Castro Nuño. Os castelhanos debandaram também, mas clamando vitória que, aliás, entre eles e Afonso fora impossível, porque empatavam no mútuo desastre. Só o Príncipe ficou em campo, sereno, e preparou-se para os três dias da praxe, tomando o espólio, usufruindo do saque mais os seus homens. A verdade é que Fernando de Aragão assistira, impotente e indefeso, ao recuo da sua vanguarda perante o futuro Rei de Portugal e, por isso, abandonou também o campo, os seus homens, e regressou a Zamora.
A chuva caía numa densa cortina, mas o Príncipe continuou no campo, juntando os seus homens. Acendeu fogueiras e mandou tocar a festejar a vitória. Os tambores ecoavam pela planura como um canto vindo das profundezas da terra. O arcebispo de Toledo aconselhou-o a não permanecer tanto tempo. Não três dias. Bastavam três horas. Ele ficou parte da noite. Não o denotava, mas estava preocupado. Que acontecera ao pai? Gonçalo Pires entregou-lhe a bandeira real que Duarte Almeida, de coutos ensanguentados, ainda agarrava nos dentes, tendo ficado prisioneiro. Em Toro não se achava o Rei. Todos se lamentavam. E foi então que o conde de Guimarães, futuro duque de Bragança, pois o pai só morreu dois anos mais tarde, o increpou violentamente: podiam eles chamar-se cavaleiros? Vós que abandonastes vosso Rei e Senhor? João não reagiu. Ficou a olhá-lo e os olhos negros, que pareciam deitar lume, apenas se raiaram de vermelho. Muito circunspecto, acalmou-o e não respondeu directamente ao remoque. Mas não esqueceu. Depois souberam que tudo estava bem e o Rei salvo e de saúde.

O futuro duque fizera mal em atacar o Príncipe, pois fora injusto, mas não era tempo de quezílias. O problema, em rermos políticos, resolvera-se de forma inegavelmente positiva para Aragão e Castela. O Príncipe compreendia que a união das duas Coroas não podia ser consumada pela guerra, mas pela diplomacia e pela ciência política, e custava-lhe ver o pai perder todo o prestígio de uma vida de guerreiro e defensor da Fé que conseguira em África. Do lado de Castela todos lhe viravam as costas... O duque de Arévalo e os outros. As incursões de pirataria em território nacional continuavam e, por outro lado, a rapacidade dos nobres portugueses avolumava-se. O Rei não teria coragem de lhes recusar nada. Por isso lá conseguiu do pai um documento em que este prometia contenção nas doações e autorizava o Príncipe a decidir segundo seu parecer, se caísse em tentação...
João regressa a Portugal. Deve ter deixado o Rei como um pai larga o filho em terra estrangeira. Estava-se na Páscoa e só em Junho Afonso cruzou a fronteira e entrou em terra portuguesa. Isabel de Castela e o marido também tinham compreendido que o grande jogo não se faria já com o infeliz e confiante Afonso, mas com aquele seu filho, o primo reservado, calado, de olhar severo e voz fanhosa. O Monarca, entretanto, enviara cartas para França a pedir auxílio ao astuto Rei Luís, e Álvaro Ataíde regressava da sua missão, felicíssimo. Novamente o pai de João, impante de alegria, preparou-se para viajar até à Corte do raposão que afirmara ao embaixador português que tudo faria logo que as coisas, se resolvessem com o opositor, o duque de Borgonha, aquele determinado e teimoso (saía à mãe portuguesa) Carlos, que até também era português, diziam seus amigos, no feitio temerário e na cor dos cabelos, da tez, na compleição... Afonso não aprendera. Jamais aprenderia. Eterno menino crescido, agora calvo, de barbas sulcadas de fios de prata, não aprenderia nunca que em política nada se resolve com simplicidade». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.
                                                                                 
Cortesia de EPresença/JDACT