A morte de Lancelot
«(…) Afonso protegeu o castelo e
preparava-se para a batalha final. Formou três corpos com os seus homens: à
esquerda estavam as tropas do arcebispo de Toledo, do duque de Guimarães e do
conde de Vila Real, no centro, os homens chefiados pelo próprio Monarca; à direita,
com a tropa mais adestrada, o Príncipe João. A batalha não foi ganha por
ninguém, a não ser pela ala do Príncipe. Depois de uma renhida chacina de parte
a parte, apenas o corpo de exército do Príncipe foi vencedor e desbaratou o
inimigo. O rei Afonso deu ordem de recuo e, aterrorizado perante a extensão do
que julgava ser o fim das ilusões e do conflito militar, fugiu para Castro Nuño.
Os castelhanos debandaram também, mas clamando vitória que, aliás, entre eles e
Afonso fora impossível, porque empatavam no mútuo desastre. Só o Príncipe ficou
em campo, sereno, e preparou-se para os três dias da praxe, tomando o espólio,
usufruindo do saque mais os seus homens. A verdade é que Fernando de Aragão assistira,
impotente e indefeso, ao recuo da sua vanguarda perante o futuro Rei de Portugal
e, por isso, abandonou também o campo, os seus homens, e regressou a Zamora.
A chuva caía numa densa cortina,
mas o Príncipe continuou no campo, juntando os seus homens. Acendeu fogueiras e
mandou tocar a festejar a vitória. Os tambores ecoavam pela planura como um
canto vindo das profundezas da terra. O arcebispo de Toledo aconselhou-o a não
permanecer tanto tempo. Não três dias. Bastavam três horas. Ele ficou parte da
noite. Não o denotava, mas estava preocupado. Que acontecera ao pai? Gonçalo
Pires entregou-lhe a bandeira real que Duarte Almeida, de coutos ensanguentados,
ainda agarrava nos dentes, tendo ficado prisioneiro. Em Toro não se achava o
Rei. Todos se lamentavam. E foi então que o conde de Guimarães, futuro duque de
Bragança, pois o pai só morreu dois anos mais tarde, o increpou violentamente:
podiam eles chamar-se cavaleiros? Vós que abandonastes vosso Rei e Senhor? João
não reagiu. Ficou a olhá-lo e os olhos negros, que pareciam deitar lume, apenas
se raiaram de vermelho. Muito circunspecto, acalmou-o e não respondeu
directamente ao remoque. Mas não esqueceu. Depois souberam que tudo estava bem
e o Rei salvo e de saúde.
O futuro duque fizera mal em atacar
o Príncipe, pois fora injusto, mas não era tempo de quezílias. O problema, em
rermos políticos, resolvera-se de forma inegavelmente positiva para Aragão e
Castela. O Príncipe compreendia que a união das duas Coroas não podia ser consumada
pela guerra, mas pela diplomacia e pela ciência política, e custava-lhe ver o
pai perder todo o prestígio de uma vida de guerreiro e defensor da Fé que
conseguira em África. Do lado de Castela todos lhe viravam as costas... O duque
de Arévalo e os outros. As incursões de pirataria em território nacional continuavam
e, por outro lado, a rapacidade dos nobres portugueses avolumava-se. O Rei não
teria coragem de lhes recusar nada. Por isso lá conseguiu do pai um documento
em que este prometia contenção nas doações e autorizava o Príncipe a decidir
segundo seu parecer, se caísse em tentação...
João
regressa a Portugal. Deve ter deixado o Rei como um pai larga o filho em terra
estrangeira. Estava-se na Páscoa e só em Junho Afonso cruzou a fronteira e
entrou em terra portuguesa. Isabel de Castela e o marido também tinham
compreendido que o grande jogo não se faria já com o infeliz e confiante Afonso,
mas com aquele seu filho, o primo reservado, calado, de olhar severo e voz
fanhosa. O Monarca, entretanto, enviara cartas para França a pedir auxílio ao
astuto Rei Luís, e Álvaro Ataíde regressava da sua missão, felicíssimo.
Novamente o pai de João, impante de alegria, preparou-se para viajar até à
Corte do raposão que afirmara ao embaixador português que tudo faria logo que
as coisas, se resolvessem com o opositor, o duque de Borgonha, aquele
determinado e teimoso (saía à mãe portuguesa) Carlos, que até também era
português, diziam seus amigos, no feitio temerário e na cor dos cabelos, da
tez, na compleição... Afonso não aprendera. Jamais aprenderia. Eterno menino
crescido, agora calvo, de barbas sulcadas de fios de prata, não aprenderia
nunca que em política nada se resolve com simplicidade». In Seomara Luzia da Veiga
Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995,
4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.
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