Guimarães e Coimbra, Agosto de 1144
«(…) A zanga fatal entre Afonso
Henriques e Chamoa só ocorreu depois de eu ter regressado da viagem a Roma e a Cluny.
Até ao final de Julho, e apesar de já saberem que os preparativos para o matrimónio
com Mafalda da Sabóia estavam em andamento, os dois fingiram que nada se passava,
continuando a dormir juntos. Não havia, aliás, qualquer pressa, pois o
casamento só aconteceria dali a quase dois anos, assim impusera Mafalda e aceitara
seu pai. Além disso, de novo agradado com a recuperada fogosidade de Chamoa, Afonso
Henriques suspendera os encontros com Elvira Gualter, que permaneceu em Coimbra
com as duas filhas, enquanto o meu amigo e a minha cunhada subiram a Guimarães para
passar o Verão, que se adivinhava tranquilo, feliz e sem história.
A situação geral da Hispânia, da
Andaluzia moura e do reino de Portugal mantinha-se calma e não se previam combates
durante o tempo quente. Ismar encontrava-se em Córdova, Afonso VII em Toledo, Ibn
Qasi em Silves, não se notando movimentações suspeitas de exércitos no Norte ou
no Sul. Embora existissem escaramuças entre os templários de Soure e grupos de muçulmanos,
estávamos convencidos de que a Ordem do Templo dava conta desse recado. O nosso
doce remanso foi, no entanto, estilhaçado quando Chamoa recebeu a notícia de que
seu pai, Gomes Nunes, fora banido pelo imperador, cujas tropas o tinham ido prender
a Tui, expulsando-o do território de Toronho, onde era conde. Desgostosa e ferida,
Chamoa rogou pragas ao monarca infame, culpando-o da desgraça do pai.
Maldito sejais, nunca me darei a vós!
Mas como Afonso VII não estava por
perto, rapidamente o coração daquela filha extremosa se virou contra Afonso Henriques,
a quem exigiu uma imediata retaliação. Provai que sois um verdadeiro rei!, exigiu
ela. O repto da minha cunhada caiu em saco roto. Mais de três anos depois da vitória
em Valdevez, a raiva dos portucalenses contra galegos e leoneses dissolvera-se.
Os condados da Galiza a norte do rio Minho eram nossos, o príncipe fora reconhecido
rei de Portugal pelo primo, a paz tinha sido acertada em Zamora, não havia razão
para uma nova luta. Banir Gomes Nunes de Toronho era uma injustiça, mas não era
ilegítima, pois nos territórios da Galiza o poder imperial de Afonso VII sobrepunha-se
ao de Afonso Henriques. Ide buscar vosso pai, posso oferecer-lhe um castelo, propôs
este, mas nem essa oferta generosa pacificou Chamoa. Minha mãe e meu tio estão a
rir-se de vós, portucalenses!, recordou ela, inflamada de ira.
Ninguém se incomodou. Quando Chamoa
pediu ajuda a Peres Cativo, este encolheu os ombros e alegou que seu meio-irmão,
Fernão Peres de Trava, já fora a Jerusalém penitenciar-se dos pecados que
cometera. E, à direita dele, Gonçalo Sousa mostrou que não esquecera o afrontamento
de Lisboa. Recordado por Chamoa das vilezas de que fora alvo em Tui, o alferes ripostou:
depois do que haveis dito de mim, não podeis esperar milagres! Furiosa, Chamoa apontou-lhe
o dedo e preparava-se para o insultar quando um furioso Afonso Henriques
interveio: calai as vossas aleivosias!
Em desespero de causa, a minha cunhada
olhou para meu pai e lançou-lhe uma ameaça velada: Egas Moniz, irei obrigar-vos
a contar a verdade! O mordomo-mor do reino de Portugal manteve-se calado, mas Afonso
Henriques perdeu a paciência e gritou: quem sois vós, para atacar os meus
conselheiros? Ide para Tui e voltai quando a cabeça vos esfriar! O abalo de Chamoa
foi imediato. O rei de Portugal acabara de mandá-la partir, não a queria ali e não
a iria ajudar, nem ao pai dela!
Já não me ama!
No seu coração, uma fúria imensa
levantou-se e foi então que ela disse, em frente daquela assembleia, que Afonso
VII andava a espalhar uma malícia sórdida sobre o seu primo. Chama-vos impostor
e usurpador! Ficámos todos calados, os que sabiam e os que nada sabiam. Só Afonso
Henriques perguntou a que se referia ela. Sustive a respiração: iria finalmente
Chamoa contar ao rei de Portugal a intriga de Compostela? Um dia, ireis
agradecer-me, afirmou ela, misteriosamente. E provarei que ninguém nesta sala vos
ama tanto como eu!» In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das
Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.
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