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Textos e Sociedade no Garbe Al-Andaluz
Fome de homens e transformações sociais
«(…) Segundo a Crónica da Conquista do Algarve, em Faro a avença
que el-rei fez com os mouros foi por esta guisa: que eles lhe fizessem aquele
mesmo foro que em todas as cousas faziam a seu rei e que eles houvessem todas
as suas casas, vinhas e herdades pela guisa; e que el-rei os defendesse e
amparasse assim dos mouros como de outras quaisquer gentes que lhes nojo
fizessem. E os que quisessem ir para alguns lugares de mouros que se fossem
livremente com todas as cousas. E que os cavaleiros mouros ficassem por seus
vassalos e que andassem com el-rei quando lhe cumprisse e
que ele lhes fizesse bem e mercê.
O foral de Cáceres é também muito elucidativo. A vila foi rendida por
Giraldo Sem Pavor em 1165 mas só passou definitivamente para domínio cristão em
1229, sessenta e quatro anos depois. Segundo o foral então outorgado, os
povoadores não queriam povoar Cáceres porque temiam perder tempo e tudo o que
tinham se acaso Afonso IX de Leão e da Galiza desse a vila a alguma ordem
religiosa, concretamente à Ordem de Santiago. O rei garantia aos habitantes
concelho per se e super se, sujeito somente à majestade do rei de Leão e
assegurava: quem vier povoar Cáceres, seja de que condição for, cristão, judeu
ou mouro ou livre ou servo venha seguramente. E nem respondam por inimizade ou
por qualquer outra coisa que tenham feito antes da tomada de Cáceres. E se
algum vizinho vender ou empenhar bens de raiz aos frades, perca-os para o
concelho. Isto é, os povoadores de Cáceres, cristãos, judeus ou mouros (e entre
os cristãos bom número dos tornadiços que os Costumes de Beja
protegem) impunham como condição para povoar de novo a vila a soberania do
concelho, apenas sujeita à autoridade régia, a não aceitação da Ordem de
Santiago, zeladora da fé e dos bons costumes, e o perdão implícito da oposição
à conquista.
Caminho/peregrinação a Meca
Desbravado está o caminho para Santiago, caminho mais intensamente
cavalgado e calcorreado após o afluxo dos frades cluniacenses e dos condes buiguinhões
Raimundo e Henrique. Mas houve também um caminho, e mais antigo, para Meca.
Muitos peninsulares fizeram a peregrinação à cidade santa dos muçulmanos. Mas
tal como no caminho de Santiago, nos caminhos de Meca cruzaram-se homens,
animais, plantas, mercadorias, técnicas agrícolas e artesanais, ideias,
manuscritos de Aristóteles, de Avicena, a ideia de Universidade e de Hospitais.
Os historiadores e arqueólogos põem hoje em relevo os caminhos do Mediterrâneo,
bem mais antigos que a expansão árabe-muçulmana. Mas o caminho para o
Mediterrâneo, sobretudo nos séculos mais tardios da dominação muçulmana, tinha
um nome, tinha pelo menos uma cidade farol no longínquo horizonte, a cidade
santa de Meca. Não será por razões civilizacionais e ideológicas que nos integramos
hoje facilmente, crentes e não crentes, numa peregrinação motorizada ou
pedestre a Santiago e temos dificuldade em conceber que antepassados nossos,
bons e legítimos hispanos, tivessem caminhado e navegado para Meca e aí tenham
descalçado as sandálias e beijado a pedra da kaaba?
Da cidade muçulmana
Os textos permitem considerar o binómio cidade-campo não só como
estruturas opostas mas complementares. O quotidiano das cidades e das vilas do
Garbe com os seus campos não se afastaria muito daquele que se entreabre no Tratado
de Ibn Abdune. As cidades viviam da produção agrícola das aldeias da sua periferia
e nas primeiras moravam funcionários, mercadores, proprietários e artífices.
Nas almoinhas das vilas e cidades vicejavam as hortas e pomares. Mas, sem as
aldeias e os seus cereais, as cidades facilmente seriam presa de conflitos
internos e mudariam de senhor.
O elo cidade-aldeias era assegurado pelos chefes das aldeias que aí
representavam o poder da cidade. Estes deveriam manter boas relações com os
camponeses pondo um freio nos avaliadores de impostos, considerados a escória
da população. Nas herdades dos particulares deveria haver um guarda jurado ou
os camponeses tratariam as herdades dos habitantes da cidade como se fossem públicas.
E os braceiros agrícolas teriam de cumprir com consciência a sua jornada de
trabalho não perdendo tempo com a satisfação das suas necessidades. Á frente
das cidades estava o juiz, assessorado no seu pretório por dois juristas e
defendido pela guarda dos alguazis. Ligados à actividade do juiz, multiplicavam-se
os notários e os advogados que não deveriam ser moços, borrachos ou libertinos.
Além de julgar os feitos civis e criminais, o juiz tinha a seu cargo o tesouro
das fundações pias dos muçulmanos. A ele cabia dar dinheiro para se cultivar
determinado campo, para o pagamento de salários, restauração de herdades ou
edifícios ou ainda para a organização de campanhas militares. Também só uma ordem
do juiz poderia quebrar a inviolabilidade do domicílio, garantida pela lei». In
António Borges Coelho, O Tempo e os Homens, Questionar a História III,
Editorial Caminho, Colecção Universitária, Lisboa, 1996, ISBN 972-21-1076-4.
Cortesia Caminho/JDACT