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Coimbra.
Julho de 1117
«(…) Essa radical solução imposta
em Toledo não agradara a ninguém. Mas enquanto o imperador foi vivo só o conde Henrique
o contestou, o que lhe valeu ser expulso de Toledo, banido pela ira real. Os
outros interessados, como dona Urraca, Afonso I de Aragão, o arcebispo Gelmires,
Pedro Froilaz de Trava ou dona Teresa, calaram-se e esconderam a cólera debaixo
de falsos sorrisos, dominados pelo temor reverencial que tinham ao velho monarca.
Porém, não precisaram de esperar muito, pois meses depois o imperador morreu, e
uma espectacular anarquia nasceu nas Hispânias.
Parece que o mundo onde vivemos
trinta invernos já não é o mesmo, acrescentou meu pai. Quando, três anos depois
do falecimento do imperador, morreu estranha e prematuramente o conde Henrique,
em toda a Península já ninguém percebia quem lutava contra quem e porque o faziam.
Urraca lutava contra o marido, Afonso I de Aragão; contra a irmã Teresa; contra
os partidários do filho, liderados pelo arcebispo Gelmires e por Pedro Froilaz de
Trava; que por sua vez também lutavam contra dona Teresa. Todos lutavam contra
todos. As alianças familiares duravam dias, semanas, no máximo meses, para depois
serem desfeitas e substituídas por outras, em sentido oposto. A zaragata cristã
instalara-se. Está-nos a acontecer o mesmo que aos árabes, murmurou meu pai. Oitenta
e tal anos antes, a desagregação do califado de Córdova permitira finalmente aos
cristãos avançarem na sua reconquista ibérica. Assim se haviam tomado Coimbra, Santarém,
Lisboa, Toledo, Valência e Saragoça, empurrando os mouros para o mar. Nem mesmo
pedindo ajuda aos almorávidas, uma seita de berberes que se tornara poderosa em
África, onde dominava já o Norte e os desertos, os muçulmanos peninsulares
conseguiram mudar inicialmente o destino da guerra.
A história repete-se agora, mas do
lado oposto, confirmou Ermígio. Tal como a morte de Al-Mansor lançara o califado
de Córdova no caos, a morte do imperador Afonso VI esfrangalhara o poder cristão.
E tal como as taifas mouras se haviam derretido em sangrentas quezílias entre tiranetes
tontos, os reinos cristãos caíam no mesmo erro e perdiam os territórios tão duramente
reconquistados, ao ponto das tropas de Ali Yusuf chegarem até Coimbra! Desunidos,
os árabes haviam sido presas fáceis para os cristãos. Desunidos, os cristãos estavam
a ser presas fáceis para os almorávidas, conclusão que os irmãos Moniz tinham acabado
de retirar, quando ouviram o inesperado grito de uma criança, no alto da torre do
castelo. Era Afonso Henriques, mas não perceberam porque berrava, e olharam um para
o outro, preocupados.
Devíamos tirá-lo daqui, disse Ermígio.
Se o califa o mata... Meu pai suspirou e depois lamentou-se: minha esposa Dordia
está muito doente, não aguenta uma viagem. Nem sei se voltará a ver Lamego. Já tinham
experimentado de tudo, desde as mezinhas de pó de texugo aos sangramentos da veia
do braço direito, mas Dordia Viegas não melhorava. Por isso, Egas Moniz sugeriu
um arrojado plano. Ide vós, hoje à noite, em segredo. Levai o infante, mais dois
ou três homens. Ide pela estrada do Norte, há menos mouros ali, e ide para Santa
Maria da Feira.
Estavam agora na zona norte da muralha
e viam-se poucas tropas, pois o califa concentrara as suas forças a leste e a oeste
da cidade, e sobretudo a sul, junto ao rio. Havia razões para isso: Coimbra só tinha
a oriente a Porta do Sol; a sueste, a Porta da Traição; a sudoeste, a Porta do Arco;
e a ocidente, a Porta da Almedina. Não havendo porta a norte, era inútil atacar
por aí.
Ermígio Moniz duvidou da
arriscada fuga. Acreditava na resistência da cidade, protegida pelos seus ancestrais
muros. Os árabes haviam saqueado as igrejas dos arrabaldes, a de São Vicente, a
de São Pedro e a de Cucufate, mas a almedina era favorável aos que a defendiam e
a alcáçova de Coimbra quase inatacável. Além disso, grande parte da população era
composta por moçárabes, leais aos cristãos desde que Sesinando recebera o governo
da cidade das mãos do seu conquistador, o pai de Afonso VI, Fernando Magno. Há
mais de cinquenta anos que Coimbra era cristã e os infiéis acabariam por se
cansar, como acontecera no ano anterior. É muito perigoso, murmurou Ermígio. E se
nos apanham? Com convicção, meu pai insistiu: levam bons cavalos, rápidos, a meio
da noite. É preciso salvar Afonso Henriques! O ataque final do califa está para
breve! Ermígio torceu o nariz. Transportar o jovem príncipe era uma enorme responsabilidade
e ele temia falhar. Lamentou-se: faz-nos falta Paio Soares e os seus conselhos».
In
Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras,
2015, ISBN 978-989-741-262-2.
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