sábado, 22 de dezembro de 2018

A Irmandade Perdida. Anne Fortier. «Era um pássaro!, gritou Lilli, esfregando a perna com fúria. Ele me bicou! Onde está? Não deixe ele me morder de novo. Mirina ergueu uma das mãos para proteger os olhos do sol…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Norte de África
«(…)Conseguimos, Lilli! Mirina cambaleou nas pedras instáveis do leito do rio. Não havia muita água; o que outrora devia ter sido um curso d’água caudaloso não passava agora de uma fenda comprida e estreita na paisagem desértica. Mas ela estava animada demais para se decepcionar e exausta demais para sentir algo além de um débil latejar quando as pedras irregulares esfolaram os últimos pedaços de pele intacta dos seus pés cansados. O rio! Finalmente caindo de joelhos à beira d’água, soltou de seu pescoço os braços finos de Lilli, que o enlaçavam desde o raiar do dia. Está ouvindo? É o rio! Ela desceu a irmã inerte até ao chão e começou a despejar água nos lábios que tinham passado o dia inteiro calados. Vamos, beba. O deserto fora maior do que ela imaginava. Os seus cantis de bexiga de cabra haviam secado antes mesmo de elas chegarem à metade da travessia. Ela tranquilizava Lilli dizendo ver árvores no horizonte, além da planície escaldante. Torcia para as próprias palavras virarem realidade. No entanto, à medida que as horas passavam sem nenhuma sombra ou água, as conversas entre as irmãs foram se tornando mais e mais breves, até não restar mais palavras a serem ditas.
Nos últimos dias de viagem, Mirina não havia parado de escutar a voz paciente e firme da mãe instando-a a prosseguir, prosseguir. Precisa chegar ao rio, dizia a voz, num sussurro urgente. Não pode parar. Precisa seguir em frente. As palavras nunca falhavam nem enfraqueciam. Da mesma forma que a mãe jamais havia deixado a sua cabeceira durante todas as noites de doença e medo na infância, também permaneceu fiel ao seu lado naquelas últimas horas cambaleantes, quando não havia mais nada a que se agarrar excepto algumas palavras insistentes na sua cabeça. Preciso chegar ao rio. No final do rio fica o mar. Junto ao mar, a cidade. Na cidade vive a Deusa da Lua. Só ela tem o poder de curar a minha irmã.
Quando Lilli finalmente recobrou os sentidos, virou o rosto em todas as direcções, com os olhos frágeis quase fechados e sem nada ver. Então começou a chorar, os ombros estreitos tremendo de tanto desespero. Aqui não é o rio, soluçou ela. Você só está dizendo isso para me reconfortar. Mas é, sim! Sinta só. Mirina guiou as mãos da irmã até à água rasa. Eu juro que é. Ela correu os olhos pela paisagem desolada e poeirenta. Antigamente, muitas árvores deviam margear aquele curso d’água, mas agora eram apenas esqueletos tombando em busca de apoio, tristes resquícios de um mundo de viço havia muito desaparecido. Tem que ser aqui. Mas eu não estou ouvindo nenhum barulho de água, falou Lilli, enxugando corajosamente as lágrimas e inclinando a cabeça na tentativa de escutar. Deve ser um rio bem silencioso.
É, sim, reconheceu Mirina. Um rio velho e cansado. Mas ele ainda está vivo e vai nos levar até ao mar. Vamos, agora beba. As duas passaram algum tempo em silêncio, saciando a sede. No início, foi como se a garganta de Mirina tivesse esquecido o que fazer para engolir, mas depois de conseguir forçar os primeiros goles ela pôde sentir o líquido fresco descer pelo corpo e restaurar a vida por onde passava. Depois de matar a sede, recostou-se nas pedras e fechou os olhos. Tantos dias sem descanso e aquele último trecho sem água... Por quanto tempo havia carregado Lilli no colo? Dois dias inteiros? Não, não era possível. Um grito assustado e um súbito bater de asas a fizeram levantar-se. Ao ver a irmã aterrorizada sacudindo os braços para afugentar o inimigo que não via, ela sacou na mesma hora a faca do cinto.
Era um pássaro!, gritou Lilli, esfregando a perna com fúria. Ele me bicou! Onde está? Não deixe ele me morder de novo. Mirina ergueu uma das mãos para proteger os olhos do sol e viu dois abutres magros voando em círculos no céu. Praga maldita!, balbuciou, guardando a faca e pegando o arco. Estavam querendo banquetear-se com osco hoje... Porque os deuses nos desprezam tanto?, questionou a mais nova, segurando os próprios joelhos e começando a balançar-se para a frente e para trás. Por que eles querem a nossa morte? Eu não perderia o meu tempo pensando no que os deuses querem ou não. Mirina tirou da aljava a sua melhor seta para aves. Se eles quisessem, mesmo, nos matar, poderiam ter feito isso quarenta vezes. Apoiou a seta na corda, pôs-se de pé devagar e a puxou para trás. Está claro, que algum poder nos quer manter vivas. Mais tarde, quando estavam deitadas junto à pequena fogueira de gravetos sob um céu estrelado, digerindo a refeição sem gosto, Lilli se aconchegou junto à irmã e disse: a mãe veio falar comigo, sabia? Eu a vi muito bem...» In Anne Fortier, A Irmandade Perdida, 2014, Editora Arqueiro, 2015, ISBN 978-858-041-543-0.
                                                                      
Cortesia de EArqueiro/JDACT