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Manuel I e o fim da tolerância religiosa
(1496 - 1497
Organização comunitária: judiarias,
mourarias e comunas
«(…) O foral de 1170 e os seus sucedâneos
não especificam durante quanto tempo o alcaide devia permanecer no cargo, nem se
a sua eleição devia ser confirmada pela Coroa. Só no foral, em língua portuguesa,
outorgado aos muçulmanos de Moura (1296) se definia categoricamente que a
eleição do alcaide estava sujeita à confirmação régia. Na prática, apesar das garantias
do foral, o processo de escolha do alcaide durante o século XV alternava entre
a eleição pela comuna e a nomeação arbitrária pela Coroa (em 1416, um muçulmano
chamado Ferfão (Faraj?), por exemplo, foi nomeado alcaide dos muçulmanos de Santarém
por Afonso V, em troca de serviços militares prestados em Castela com cavalos e
armas). Os mandatos dos alcaides lisboetas também variavam bastante, entre um e
seis anos. Em Évora, o sistema de eleição parecia não correr muito bem. Quando a
comuna muçulmana de Évora pediu a Pedro I que demitisse o seu alcaide, solicitou
também ao monarca para decretar que o alcaide não ocupasse o cargo para toda a vida
ou durante longos períodos de tempo, mas que o exercesse durante um período fixo
de apenas um ano e ainda que o rei, ou quem ele quisesse, confirmasse a sua
eleição. Quase um século mais tarde, em 1455, a Coroa foi novamente obrigada a intervir,
quando representantes dos muçulmanos de Évora pediram a Afonso V que nomeasse Ali
Caeiro, porque se encontravam desregidos e a ponto de se perder por não terem alcaide.
Em, pelo menos, um caso extraordinário,
muçulmanos portugueses perderam completamente o seu direito de eleger o seu líder.
Estes muçulmanos, contudo, não se encontravam sob jurisdição régia, mas sujeitos
à Ordem Militar de Avis. Em 1331, os muçulmanos de Avis intentaram uma acção no
tribunal real de apelação contra o seu senhor Gil Peres, o mestre de Avis, sobre
a questão do seu direito de escolher o alcaide. Representados pelo seu alcaide eleito,
Muhammad Francelho, os muçulmanos alegaram que sempre haviam gozado do direito de
eleger o seu próprio alcaide segundo o seu foral, que derivava do de Lisboa. O
mestre de Avis refutou categoricamente esta alegação, afirmando que sempre desde
o povoamento da terra os alcaides foram designados pelos mestres [de Avis] e que
ele e os seus antecessores sempre escolheram para alcaide quem bem entendessem.
No fim, o processo foi abruptamente interrompido quando a delegação muçulmana
em Lisboa recebeu ordens da comunidade de Avis para retirar a sua acção, e a coroa
não teve outra alternativa senão reconhecer o direito do mestre de Avis.
Os outros funcionários das comunas
muçulmanas eram muito semelhantes aos das comunidades judaicas. Como na sua equivalente
judaica, cada comuna muçulmana tinha uma câmara, um escrivão e um tabelião. Os detentores
destes últimos dois cargos podiam ser muçulmanos ou cristãos. Os escrivães eram
eleitos, mas os tabeliães compravam uma licença à coroa e deviam pagar uma taxa
anual pelo privilégio. Em 1414, o procurador da Coroa, Bartolomeu Domingues, processou
Yusuf, tabelião dos muçulmanos de Lisboa, por não pagar as cinquenta libras anuais
que devia pelo seu cargo, que ele exercera durante catorze anos. Yusuf contestou,
alegando que o ofício de tabelião da comuna muçulmana de Lisboa fora inicialmente
dispensado desse pagamento.
O veredicto final isentou Yusuf do
pagamento retroactivo dessa taxa, mas decretou que ele pagasse daqui em diante
a pensão do dito tabeliado que detinha como pagavam todos os outros tabeliães da
dita cidade. Para proteger os seus interesses, a coroa nomeou um juiz especial
para superintender a cobrança de tributos e resolver quaisquer disputas que dela
surgissem.
A diferença mais notável na organização
das comunidades judaica e muçulmana era, provavelmente, a manifesta ausência de
um oficial muçulmano equivalente ao rabi-mor judeu. Não existem indícios de que
os governantes de Portugal alguma vez tivessem criado um cargo equivalente ao
do alcade mayor de las aljamas de los moros no reino de Castela ou
ao do qadi general em Aragão». In François Soyer, A Perseguição aos Judeus
e Muçulmanos de Portugal, 2007, Edições 70, 2013, ISBN 978-972-441-709-7.
Cortesia de E70/JDACT