sábado, 15 de dezembro de 2018

A Rainha Adúltera. Joana de Portugal. O Enigma da Excelente Senhora. Marsilio Cassotti. «Devido a essa amálgama de interesses e afectos, surgidos nos tempos da criação e cultivados ao longo de toda uma vida de estreitos contactos, Joana sentir-se-ia segura para dar poderes ao irmão de leite»

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Para serviço de sua pessoa e casa
«(…) Em finais de Julho de 1453, quando já terminara o quinto mês de gravidez de Isabel de Portugal, rainha consorte de Castela, as autoridades apostólicas terão recebido uma das cópias da sentença de divórcio de Enrique, confirmadas por Blanca de Navarra, como algum tempo mais tarde essas mesmas autoridades assinalariam no documento de dispensa matrimonial; documento este que não deixa nenhum resquício de dúvida de que a Santa Sé considerava legítima a decisão. Além do Rabjuçe, é provável que Enrique tenha enviado para negociar em Portugal o seu secretário, o judeu convertido Alvar García de Ciudad Real. Segundo Palencia, um Cícero que rebusnava as tentativas de Enrique (...), com o qual gostava de conversar Afonso V, [cujo] entendimento, normalmente perspicaz, somente nesta ocasião se mostrou turvo, como que obcecado por uma nuvem funesta. Acolheu benévolo a quem deveria ter olhado com enfado; ouviu muitas vezes aquele comilão, que dificilmente conseguia travar a sua língua, e se por acaso não gostava do orador, agradavam-lhe as suas orações, todas encaminhadas para tratar do futuro matrimónio. E embora seja coisa averiguada que a impotência de Enrique, naquela altura já divulgada por todo o mundo, não se podia ocultar a Afonso, rei de uma nação fronteiriça com Castela e primo tanto da repudiada como do repudiador, apercebeu-se sem esforço que aquele matrimónio falso lhe traria um aumento do império, podendo tratar-se até de um impropério.
De modo que o monarca português, pelo menos segundo o palentino, quando por fim considerou chegada a oportunidade, diz-se que instou com grande impaciência à sua irmã que declarasse se aceitaria um enlace infecundo, satisfeita apenas com o nome de rainha. Ao que a infanta Joana teria respondido entre outras razões, que preferia sê-lo num reino poderosíssimo, a conseguir feliz sucessão com outro esposo. Segundo a Crónica anónima, a resposta da infanta fora, pelo contrário, que estava muito contente por casar com ele, não obstante as coisas ditas. Já em Agosto, Rui Galvão, secretário de Afonso V que antes desempenhara esse mesmo ofício para o pai e a mãe do rei e até havia não muito tempo fora administrador dos gastos de Joana, pôde viajar para Castela para prosseguir aí as negociações relacionadas com o matrimónio da inÍanta.
Na última semana de Outubro de 1453, a menos de um mês para a rainha Isabel de Portugal dar à luz, o rei Afonso V passou procuração ao dr. Lopo Gonçalves, alcaide-mor de Montemor-o-Velho; e três dias depois, em Tomar, o mesmo fez a infanta Joana. Dava-se o caso de que o procurador escolhido por ambas as partes fora colaço da infanta Isabel de Portugal, duquesa de Borgonha, tia de Joana, como filho que era de uma fidelíssima ama com quem a duquesa de Borgonha tivera relações afectivas e económicas desde que deixara o reino, em 1429. Como a a parteira de Joana, também essa mulher era proveniente de Évora.
Devido a essa amálgama de interesses e afectos, surgidos nos tempos da criação e cultivados ao longo de toda uma vida de estreitos contactos, Joana sentir-se-ia segura para dar poderes ao irmão de leite, da sua tia e encarregá-lo da delicada tarefa de viajar até Castela para receber a fabulosa quantia de cem mil florins de ouro de Aragão que Enrique tinha aceitado entregar à prometida em troca da sua mão, uma vez que, ao contrário do costume, seria o noivo que daria à futura esposa o dinheiro para o dote. Uma importante quantidade de ouro cunhado, quase o dobro do dote da infanta Leonor, que Joana poderia conservar para si própria, mesmo que a união fosse infecunda ou se por qualquer motivo o matrimónio acabasse. Isto leva a supor que a parte portuguesa estaria a par dos riscos que implicava para Joana casar-se com um homem que se declarara impotente, ainda que fosse por malefício, e apenas com a sua primeira mulher.
Chegadas a este ponto as negociações do matrimónio de Joana, com carta assinada em Nápoles a 13 de Novembro de 1453, o rei Alfonso V de Aragão solicitou ao papa Nicolau V a dispensa de matrimónio para que Joana e Enrique, primos por parte da mãe, se pudessem casar em conformidade com as leis eclesiásticas, justificando a petição no desejo de essa união contribuir para a paz entre os reinos cristãos da Península Ibérica, e assinalando de novo que o vínculo anterior de Enrique com Blanca fora declarado nulo pelo pontífice». In Marsilio Cassotti, A Rainha Adúltera, Joana de Portugal e o Enigma da Excelente Senhora, Crónica de uma difamação anunciada, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-626-405-5.

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