O
Medo
«(…)
Soltou-se brandamente e correu pela
escada de madeira velha, que estalou numa espécie de gemido contínuo sob a
pressa irregular dos seus pés, ainda com a pressão quente das mãos quentes dele
nos cabelos, nos seios, nas ancas, nas ancas através da saia; nas pernas o
contorno firme das pernas dele, o sulco profundo dos seus dedos a tentar
destruir-lhe o tremor quase inconsciente do corpo, o medo de recuar, voltar
para trás. E apertou mais o corrimão de ferro estreito, frio, até o sentir
cravado na carne, a rasgar-lhe a carne à medida que a mão descia acompanhando o
movimento das pernas, do corpo todo, olhos cravados na porta lá em baixo a
deixar passar vagamente uma ténue claridade já opaca de noite, espessa já no ruído
agudo da rua. Ela sabia-o a vê-la descer naquela pressa despropositada,
indeciso entre descer também, chamá-la ou apenas continuar assim calado, sem
compreender. Hesitou, oscilou no crepúsculo acentuado da escada e continuou
agora lentamente como se hesitasse ainda, lentamente como quando a subiu, cada
movimento controlado, marcado, silencioso. E ele debruçado, com a marca das
ancas nos dedos, com a descoberta incompleta do seu corpo a espiar-lhe a mais
pequena hesitação, o menor gesto. Soltou o corrimão; parada, oscila um segundo,
talvez nem um segundo, os olhos cravados na porta. Oscila ainda, mas retesa-se
logo e numa espécie de salto à mistura com o rangido áspero da madeira, desceu
o que lhe restava na escada e na rua encostou-se entontecida a qualquer coisa,
talvez a um cartaz onde uma mulher inclinada olhava em frente com um pequeno
gato enrolado aos pés, ou talvez a um poste de sinalização. Quem sabe se nem
mesmo se encostou e apenas gemesse até retomar consciência de si e continuasse
rua abaixo sem saber porquê, com toda aquela ânsia, aquele medo, com aquela
raiva contida.
O
Vazio
A areia havia tomado uma tonalidade baça,
amarelada, de marfim, e era pesada e húmida, pesada sem o sol, como se a Lua
pesasse nos ombros e nos dedos através dela: grossa, áspera, quase dolorosa, ao
mesmo tempo que mole, esponjosa, peganhenta. Tentou sacudi-la do peito, das
ancas, dos cabelos. Ajoelhada, via toda aquela extensão vazia..., a areia
agarrava-se-lhe à pele e ela via toda aquela extensão vazia... De pé voltou-se.
De pé sem mesmo o olhar mas a fixá-lo muito como se o visse, como se tivesse de
inventar as palavras, como se não soubesse qualquer gesto, afinal sem sequer o
fixar mas apenas olhando na sua direcção, parecendo realmente olhá-lo, mas nem
o vendo, porém sentindo toda e qualquer partícula do seu corpo, repugnada.
Ergueu as mãos, finalmente ergueu as mãos e aproximou-as da cara, aproximou-as
da boca, mecanicamente do cabelo, de novo da boca, e deixou-as cair a aflorar
as ancas, para as tornar a erguer, indecisa, agora olhando-o realmente, e não a
areia, nem o mar, nem os paus das barracas, olhando-o realmente, tendo a total
consciência da sua presença, da sua
presença estranha de desconhecido, da sua língua estranha a que cerrara os
dentes, dos seus olhos estranhos que a fitaram enquanto ia e vinha dentro de
si. Curvou-se então e quase sem ruído começou a vomitar sobre a areia.
O
Vinho
O olhar apático, vazio, percorre, escorrega no
pequeno tampo da mesa e detém-se-lhe nas mãos firmes, grandes, pousadas perto
dos copos quase cheios que ambos esqueceram por momentos, presos a uma enorme
lassidão: quase um sono. Oscila um pouco a cabeça, os dedos cravados no vidro
frio do copo branco ao qual o vinho empresta um tom dormente, rosado.
Avidamente, de um trago, deixa o líquido espesso inundar-lhe a boca e correr
amargo pela garganta. O sol atravessa a porta envidraçada e detém-se perto do
balcão estreito. Ele torna a encher-lhe o copo e ela torna a engolir o vinho,
sequiosa, demorando o copo perto dos lábios, o copo já vazio que ele enche e
ela bebe presa de uma sede sem limites, de uma indiferença sem limites, de um
vazio sem limites. Oscila um pouco a cabeça e olha-o, demorando-se a
examinar-lhe a curva correcta do nariz, ou talvez nem o olhe, tomada por uma
total indiferença ou dor, uma dor ou uma maneira branda de se calar ao deixar o
vinho correr na garganta: ávida, sequiosa, numa pressa enlouquecida. Ele repara
na sua palidez, nos vincos que se
desenham mais sob os olhos à medida que a tarde avança e o sol se vai
alastrando gorduroso, enfraquecido, no chão, a contornar os pés das mesas, a
tentar subir mesmo até à garrafa, até aos dedos fechados sobre o copo ou
abertos inúteis sobre o tampo da mesa. Estremece; o vinho tem um travo amargo
que a adormece por dentro pouco a pouco. Estremece; um arrepio que a faz tremer
no seu vestido decotado a mostrar-lhe o peito solto. Quando ela se curva o
homem pensa mesmo ir vê-lo soltar-se do pouco tecido que o prende e ficar ali
exposto à luz macilenta do crepúsculo enquanto ela bebe, as duas mãos erguidas
perto da cara, crispadas no copo de vidro grosso ao qual o vinho empresta um
tom rosado, dormente. Estremece; poisa sem ruído o copo vazio e deixa as mãos
ao lado das dele, sem as tocar. Olha a rua através da porta envidraçada e
repara que as luzes já se começaram a acender dentro das lojas. O sol recuou no
soalho, agora é apenas uma ligeira mancha a chocar nos vidros da porta de
batentes e lá fora nas montras. Afinal era isso o que primeiro supusera ser a
luz acesa das lojas: ainda não será tão tarde. A mulher sente calor: o calor
fictício do vinho e também a tontura envolvente do vinho, do qual não tem o
hábito. Ele enche-lhe o copo e ela bebe ainda, sem falar: olha-o apenas
tacteando o vácuo que não transpõem um para o outro e através do qual se fixam,
se desviam, se aproximam de novo, em silêncio». In Maria Teresa Horta, Ambas as
Mãos sobre o Corpo, Publicações Europa América, colecção Século XX, 1984, ISBN
978-972-100-090-2.
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