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«(…) Julgando
reconhecer aquele vulto imóvel que parece esperá-la, nimbado em contraluz pelo
intenso sol do meio-dia, Leonor Távora afasta, curiosa, a leve cortina de cetim
bordado a ouro, para se debruçar um tudo-nada. Durante esse breve segundo
olham-se nos olhos uma da outra, estremecendo ambas com a invasiva e maligna
sombra neles adivinhada. Inclinando-se para trás, a marquesa deixa tombar
depressa a cortina e, lívida, recolhe-se na penumbra velada, à espera de
encontrar na força e na atenção do marido a coragem que de súbito lhe falta.
Mas Francisco de Assis sente-se por demais inquieto e distante para reparar no
sobressalto dela, a tranquilizar-se a seu lado à medida que o tempo passa. E
quando chegam à casa deles na Rua da Boa-Viagem vão ainda em silêncio,
interditos e apreensivos com o despacho do secretário Sebastião José Carvalho
Melo, a preveni-los de que, sem mais demora, El-Rei quer recebê-los. Paralisada
sob o calor que a abrasa, a bruxa espera que a carruagem passe, quando uma das
pequenas janelas inesperadamente se abre e uma mulher se curva para a olhar,
deixando-a mergulhar por inadvertência ou espanto até ao fundo violeta dos seus
olhos, onde o sangue e a morte se misturam, pois poucos anos a separam já do
seu fim horrível. E quando o carro se perde ao longe, encoberto pela poeira
levantada, a bruxa foge espavorida, sentindo-se perseguida pelos próprios
poderes, que escapam ao seu controlo, a fazê-la adivinhar segredos que deveriam
manter-se ignorados até chegar a sua hora.
Vestidas para irem com os pais à missa
cantada das dez horas na igreja de Santa Madalena, as meninas conseguem escapar
de casa para o jardim onde tentam passar despercebidas enquanto se apressam nas
áleas geométricas, esgueirando-se por entre as faias, a dominarem o riso e a
vontade de correr, apesar de se sentirem contrafeitas nos vestidos de cambraia,
folhos de tule e renda a travarem-lhes o passo miúdo, toucas bordadas que
naquele primeiro de Novembro tanto as amenizam como as fazem suar, pois mais
parece estar-se no pino do verão do que no dia de Todos os Santos a caminho do
Inverno. Mal a porta, impelida a custo de tão pesada, se fecha sem ruído, logo
se libertam das capas, dos livrinhos de missa, dos ramos de alecrim que ficam
caídos nos altos degraus da escadaria de mármore que desce até ao pátio ladeado
pela torre do relógio, a ala dos serviçais oposta ao lado onde ficam as seges, e logo adiante a casa
do frio e as cavalariças.
Sem falarem uma com outra, dissimulando
a alegria de se verem soltas, elas hesitam, acabando por ir até à fonte dos
anjos de mármore onde mergulham na água fresca as mãos até aos pulsos
estreitos, para depois se salpicarem, uma correndo atrás da outra em torno das
tílias e dos cedros, já perto do muro demarcador do pomar, que por sua vez
separa a mata que ladeia a prisão do Limoeiro, onde àquela hora um condenado
espia por entre as grades da janela da cela, fascinado pela luz mosqueada, no
centro da qual duas meninas brincam à apanhada no jardim da quinta dos condes
de Assumar, perseguindo-se e correndo na lisura das pedras dos carreiros
contornados pelo buxo aparado rente, paralelo ao desenho geométrico dos
canteiros de goivos e de cravos-da-índia, dos lírios e das açucenas de um
branco açucarado de nuvem». In
Maria Teresa Horta, As Luzes de Leonor, Publicações dom Quixote, 2011, Prémio
D. Dinis I, ISBN 978-972-204-733-3.
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